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Comportamento

Todos os atos de um homem vão se refletir amanhã, na batalha da vida

Andrea Brunetto | 21/09/2014 08:16
Cena de Macbeth, tragédia de William Shakespeare.
Cena de Macbeth, tragédia de William Shakespeare.

Algum escritor descreveu melhor do que Dostoiévski o que são os sentimentos de culpa? Algum personagem foi mais desditado em seus remorsos do que Raskólnikov, de Crime e Castigo, desesperado com sua culpa e sem conseguir absolvição em seu próprio tribunal da consciência?

Respondo que sim. William Shakespeare. Em suas peças, os personagens são atormentados por suas ambições, seus desejos e desvarios, gosto pelo poder e consequentes remorsos. Shakespeare conseguiu mostrar que ter uma noite de sono tranquilo, uma vida tranquila é uma grande conquista humana, a conquista de ter renunciado a destruir o outro em proveito próprio. Macbeth, depois de ter alcançado o que almejara, feito conchavos, destruído o rei, conquistado o poder, conclui: perdi o sono tranquilo!

E assim Shakespeare apregoa que com remorsos, nada de vida tranquila, de sono tranquilo. E não só ele: Freud descobriu que o ser humano sempre está às voltas com suas culpas em seu tribunal interno. O sujeito culpado, tentando se entender e se aliviar de suas culpas é o dia-a-dia da clínica psicanalítica.

Outro personagem de Shakespeare que me recordo agora: Ricardo III. O autor começa nos contando que Ricardo III é feio, disforme, inacabado, manco, mandado pela natureza antes do tempo. Não consegue se olhar no espelho com naturalidade, não foi talhado para atividades esportivas, nem para conquistas amorosas; as mulheres não o suportam. E depois vamos descobrindo sua propensão para a maldade e violência. Mas mesmo ele que, diferente de Raskólnikov, não sente culpa – pelo menos não conscientemente – não escapa de se haver com os mortos que fez pelo caminho. E a culpa vem nos sonhos. Então podemos dizer que um sono tranquilo também é um sono sem pesadelos repletos de remorsos. Um espectro lhe aparece em sonho para dizer: amanhã, na batalha, pensa em mim. Não está exatamente assim na peça original, estou tomando um pouco determinada versão teatral.

O que Shakespeare, Dostoiévski, Kafka e outros autores que tão bem retrataram personagens culpados, nos mostram é que não se escapa de seus atos. É assim com Ricardo III, creio que é por isso que Shakespeare o fez feio. Porque sua imagem reflete a feiura de seu ser, bela metáfora para dizer que uma bela imagem que mostramos aos outros só se sustenta se realmente refletir uma “correição de espírito”. Há aqueles que tentam parecer uma imagem que não lhes corresponde. Para isso tem o ditado popular: por fora bela viola, por dentro pão bolorento. Nada tão bolorento na vida de alguém que seus remorsos.

Toda essa explanação sobre a culpa vem em função de duas situações que me aconteceram na sexta-feira. A primeira: conversei com alguém que, sabendo que eu não tinha tema para esta crônica de hoje, não me vinha nada à cabeça – já estava pensando em desistir da crônica desse domingo – sugeriu-me que escrevesse sobre a imagem. O que ele me sugeriu não é exatamente isso, mas foi o que fiquei pensando como psicanalista. Depois li uma matéria no Campo Grande News sobre um homem que estuprou e matou uma criança de dois anos. É um caso extremado, as culpas que estava pensando eram bem menores – nesse caso é uma barbárie indescritível. E pensei que, independente de todos os procedimentos jurídicos que acontecerão, esse homem já se destruiu, para ele todas as batalhas estão perdidas. E não poderia ser diferente.

E então fiquei com duas coisas na cabeça: imagem e culpas. E minhas considerações são estas: todos os atos de um homem vão se refletir amanhã, na batalha da vida. E o espectro de seus erros vai lhe dizer sempre: amanhã, pensa em mim.

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