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Comportamento

Tricô inacabado é parte da mãe que deixou as agulhas ao entrar na UTI

Paula Maciulevicius | 28/10/2015 06:12
O recorte ainda está nas mãos da filha Gycelda, caçula que doou parte das linhas, mas ficou com o que foram as últimas agulhadas da mãe. (Foto: Gerson Walber)
O recorte ainda está nas mãos da filha Gycelda, caçula que doou parte das linhas, mas ficou com o que foram as últimas agulhadas da mãe. (Foto: Gerson Walber)

A saudade materializada no tricô e crochê inacabados de dona Isabel. Mãe de três filhas, a vaidosa senhorinha se despediu do espelho e das agulhas da costura há um ano e um mês, deixando para trás o que seria um centro de mesa em tons de azul. O recorte ainda está nas mãos da filha Gycelda, caçula que doou parte das linhas, mas ficou com o que foram as últimas agulhadas da mãe.

Isabel da Rosa Ajala morreu em setembro do ano passado, aos 89 anos. "Ela era muito ativa. Gostava de se arrumar, não era daquelas velhinhas que queria ficar em casa, pelo contrário, adorava passear, ir ao shopping", descreve a Gycelda Rosa Ajala, arquiteta de 52 anos.

Desde que a velhice bateu à porte de dona Isabel, a mãe revezava moradia entre as três filhas. Os últimos dois anos foram passados praticamente tricotando no sofá de Gycelda. "A gente tinha que dar essa atenção para ela, por ser idosa já", justifica a filha.

A vaidade também estava presente na senhorinha que deixou o mundo aos 89 anos. (Foto: Arquivo Pessoal)
A vaidade também estava presente na senhorinha que deixou o mundo aos 89 anos. (Foto: Arquivo Pessoal)
Na fotografia ou no dia a dia, dona Isabel estava sempre entre agulhas. (Foto: Arquivo Pessoal)
Na fotografia ou no dia a dia, dona Isabel estava sempre entre agulhas. (Foto: Arquivo Pessoal)

Desde que se conhece por gente, Gycelda tem a imagem da mãe na cabeça com agulhas. Antes como ofício, depois como terapia. "Ela era costureira, depois que aposentou, vivia envolvida com as agulhas. Crochê e tricô eram terapia e ela gosta muito de fazer", conta a filha.

Do acordar ao dormir, a senhorinha passava boa parte do dia entre o crochê e o tricô. "Exigia da cabeça dela contar os pontos, ultimamente ela já não tinha coordenação motora pela idade, mas os pontos continuavam perfeitos", avalia Gycelda.

Além do tricô inacabado o que fica é a vaidade da mãe. Dona Isabel, conforme descreve a filha, gostava muito de viver e viver bem arrumada. "Ela levantava, passava batom, creme, lápis de sobrancelha e colocava colar. O que ela tinha, falta em nós", brinca a filha. A conjugação verbal também fica: o passado ainda não faz parte do presente, embora a ausência esteja ali.

Dona Isabel começou a passar mal em novembro de 2013, resquícios do câncer que já havia tratado 10 anos antes. A doença que estava controlada, voltou e quase a levou. Mas não era hora ainda. Uma receita "caseira", passada por amigos pela internet foi o que a filha sustenta como "salvação", complemento do tratamento de saúde dispensado e da fé de todas as filhas.

Porta papel higiênico, das costuras que a filha não conseguiu passar adiante. (Foto: Gerson Walber)
Porta papel higiênico, das costuras que a filha não conseguiu passar adiante. (Foto: Gerson Walber)
Senhorinha revezava entre tricô e crochê. (Foto: Gerson Walber)
Senhorinha revezava entre tricô e crochê. (Foto: Gerson Walber)

O bicarbonato de sódio, como conta Gycelda, passou a ser rotina na dieta. Motivada pela experiência da mãe, Gycelda criou um grupo fechado no Facebook "Filhas que cuidam de mãe com câncer", mais para relatar a própria experiência e trocar informações entre familiares que passavam pela mesma situação. 

Ano passado, o calor de agosto deixou a senhorinha desidratada, apesar de todo cuidado da família. "Não foi o câncer, foi a velhice..." e as palavras morrem no ar, assim como se foi a costureira.

Foram 21 dias internada, os últimos já na UTI, depois que ela parou de falar. Por recomendação médica, o crochê inacabado também foi levado ao hospital. Em vão. Dona Isabel nunca mais pegou nas agulhas. No atestado de óbito consta como causa da morte a falência múltipla de órgãos, consequência da pneumonia que ela pegou da internação. 

"O que ficou? O crochê e o tricô dela. As revistas que eu comprava todo mês, as agulhas do tricô. Eu doei muita coisa já, mas a saudade dói e isso ficou", resume Gycelda.

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"O que ficou? O crochê e o tricô dela" diz a filha. (Foto: Gerson Walber)
"O que ficou? O crochê e o tricô dela" diz a filha. (Foto: Gerson Walber)
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