ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no Twitter Campo Grande News no Instagram
MARÇO, QUINTA  28    CAMPO GRANDE 28º

Comportamento

A arte de um homem que há 70 anos produz a indumentária dos peões

Ângela Kempfer | 09/04/2012 12:04
Valdemar e uma de suas selas. (Fotos: Marlon Ganassim)
Valdemar e uma de suas selas. (Fotos: Marlon Ganassim)

É impressionante a vitalidade de um homem que aos 84 anos é um dos últimos a produzir selas para montaria e indumentária dos peões em Campo Grande. Valdemar trabalha há 70 anos das 7 horas da manhã até o anoitecer, entre algumas paradinhas para a conversa com os funcionários, que viraram amigos em mais de 40 anos de convivência no ofício que também envolve sapataria.

“Faço isso desde os 14 anos. Hoje eu trabalho para prolongar a vida. Seria uma desfeita com a sela se eu morresse antes dela ficar pronta”, justifica com um sorriso.

A casa na rua São Paulo é enorme e cheia de objetos de abrir os olhos de colecionador. Os moldes de papelão, para o corte das peças da vestimenta dos peões, já estão amarelados, pendurados pelas paredes, assim como as ferramentas de mais de 60 anos.

Na prateleira, dezenas de moldes de sapato em madeira são como uma instalação em uma galeria de arte.

As máquinas para costurar o couro são da década de 20, relíquias que ainda funcionam sem dor de cabeça. “A gente faz a manutenção direitinho e elas não deixam ninguém na mão”, explica Valdemar.

Os móveis de ipê já parecem feitos de ferro, tamanha parece a resistência e o colorido. Entre peças e mais peças de couro seco, há também madeira para a confecção de cargueiros. São grandes caixas utilizadas pelas comitivas para transportar comida.

“Não é mais como antigamente, porque hoje o gado viaja muito de caminhão. Mas ainda tem lugar onde só a comitiva entra e isso é que rende trabalho ainda para a gente”.

No casarão, quatro cômodos são oficinas. Seu Valdemar fica na primeira, a selaria. Só ele mexe nas selas, umas lindíssimas, no estilo mexicano, que custam R$ 1,6 mil.

“A gente faz coisa para durar. A sela tem de ter segurança. Olha aqui, quantos eu tenho para consertar. Tudo porque vem de fora e em poucos dias estraga. Tem final de semana que chego a arrumar nove.”

Ele faz tudo com paciência e um pouco menos rapidez que na época da mocidade, quando se mudou do interior de São Paulo para construir a vida em Campo Grande.

“Primeiro meu pai fugiu com a minha mãe, depois fugiu dela. Eles abandonaram a gente com um tio e resolvi que não dava mais para viver daquele jeito. Então vim para cá”, conta.

Francisco (de vermelho) e...
Francisco (de vermelho) e...
Manoel fazem as botas, ofício que aprenderam com Valdemar.
Manoel fazem as botas, ofício que aprenderam com Valdemar.

O rapaz começou trabalhando como empregado durante dez anos. Economizou e conseguiu comprar a própria selaria, onde ainda hoje funciona a loja da família, na Calógeras, quase na esquina com a Antônio Maria Coelho. “Comprei lá em 63, um ano depois do meu casamento”.

Décadas depois, está prestes a completar bodas de ouro com dona Odília. O casal tem cinco filhos e um parece a cópia do outro. Ele, cheio de histórias e afazeres e ela idem. Na cozinha, cômodo que parece ficar a maior parte do dia, há outra máquina de costura, alguns chinelos bordados e toalhas com acabamento feito por ela.

A relação é mais um atrativo, que parece divertir a família. “Esses dias a gente brigou e ele disse que estava enjoado de mim. Na hora respondi: Ué, você só me diz isso agora? Depois de tanto tempo”, brinca a esposa.

A selaria chegou a empregar 22 pessoas, mas hoje apenas oito trabalham na confecção de produtos para fazendas. “Hoje em dia ninguém mais quer saber de criar gado. Caiu 45% o trabalho no campo. O fazendeiro prefere arrendar para a cana, do que ficar no serviço com a pecuária”, reclama.

Na sapataria, Manoel e Francisco empilham botinas que serão levadas para a loja. O primeiro está “na faixa etária dos 60”, resume. Francisco tem 54 anos. Ao lado de Valdemar, o trio ri a cada frase dita.

‘Você vê né, sapateiro mente até a idade. Eles encarnaram de tal forma que não saem mais, nem a pau”, diz o chefe. Com sola de pneu, as botinas tipo “sapatão”, tem a estrutura feita por Francisco e o solado por Manoel. Também há as botas de salto e cano altos.

“A gente é unido porque não existe mais esse tipo de profissional. É uma classe quase extinta”, justifica Valdemar.

O móvel de madeira que já parece feito de ferro.
O móvel de madeira que já parece feito de ferro.
Nos siga no Google Notícias