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Comportamento

Decisão sobre troca de nome e sexo fecha ciclo e faz uma vida "renascer"

Paula Maciulevicius | 06/05/2012 16:29

Beneficiada por decisão judicial, ela poderá adotar nome feminino nos documentos oficiais

"Ela me propôs um renascer. Eu tive duas datas de nascimento. Uma quando saiu a decisão e a outra quando nasci". É com brilho nos olhos que a personagem desta história fala sobre a decisão inédita do Judiciário em Mato Grosso do Sul, que autorizou a troca de sexo, masculino para feminino, e também de nome, na documentação.

A conversa ocorreu após muita negociação e sob a condição de não haver registro de imagens. Os nomes, nem o antigo masculino nem o feminino, serão divulgados, obedecendo ao segredo de justiça do caso.

A trajetória para chegar até aqui explica tudo. O processo para ter o direito de ser "ela" nos documentos levou tempo. A mudança também. A vida da transsexual, compara, é como a metamorfose da borboleta, de passar pelo casulo, se transformar até poder bater asas e voar.

Desde pequena era menina no corpo de um menino, brincava com os sapatos de salto da mãe, mas tinha de segurar a vontade de fazer xixi na escola, porque não podia usar o banheiro das meninas e lhe parecia fora do normal usar o dos meninos. "Eu tinha que ser vinculada a situações onde o biológico era classificado", recorda.

A etapa do casulo começou na adolescência. Levou tempo para ela conseguir ser o que era até mesmo dentro de casa. Onde os pais, à época, não aceitavam, os professores não estavam preparados para atender um menino com características de menina e o tema transsexualidade passava longe das discussões.

Adolescente, começou a dar os primeiros passos para ter o poder de falar que queria ser de um jeito. "Foi quando eu pude me entender melhor e ser quem eu realmente era, mas ainda sem condições financeiras".

A transição incluiu crescer, ter emprego e começar a mudar a forma de se vestir. Palavras ditas por ela mesma, alta, magra e de olhos esverdeados. Dos dedos dos pés aos fios do cabelo curto, não há o que diga que ela tenha nascido ele. A classe para andar de salto alto sempre pertenceu a ela, assim como o carisma e toda a fineza na hora de se expressar.

O nome masculino foi o entrave para muitas realizações. A transsexual largou os estudos antes de terminar o Ensino Médio, o que atribui, em grande conta, ao constrangimento na hora da chamada. Pelo mesmo motivo, conta, não tirou Carteira de Habilitação, nem frequenta academias de ginástica.

Uma vida de contrasensos - Ser homem apenas no nome não permitia nem fazer alterações em sua própria conta bancária pelo telefone, porque a voz feminina não condizia com os documentos no banco. "Eles sempre falavam que alguma coisa não estava batendo e que era para eu procurar a agência pessoalmente".

No trabalho não foi diferente. Enquanto ainda aguardava a decisão, ela conta dos colegas que não querem chamá-la pelo "nome social". "Eles falam que o dia que trocar o documento, eles me chamam pelo outro nome. É um direito do ser humano ser chamado pelo nome social. Estamos num mundo onde a maior parte das pessoas que administram empresas são homens. Me senti perseguida sim e por homens", diz.

O relato não para por aí. Perceber a situação da qual era vítima dentro do ambiente profissional foi como sentir o peso do preconceito do mundo nas costas. "Eu senti isso na pele. Fiquei extremamente deprimida. As pessoas têm que ver o outro pelo caráter, pela integridade. Isso, antes da sexualidade. Querer julgá-la devido a uma parte biológica?", questiona.

A transformação veio de forma paulatina. A escolha do nome, ela explica que não passa de uma coincidência com o de registro de nascimento. "Há 15 anos eu comecei a ser chamada por este nome e foi ficando no subconsciente e acabou sendo..."

Durante o processo ela não esconde: "Cheguei a pensar em me automutilar, não vou mentir para você isso. Não tinha referências, sempre tive que ler, buscar nos livros, me compreender melhor e saber o caminho que eu ia entrar", desabafa.

Os movimentos para deixar o "casulo" começaram há três anos, após a cirurgia de orquiectomia bilateral, que bloqueou totalmente a produção de hormônios masculinos no corpo dela. O procedimento que só foi possível depois de laudo psiquiátrico indicando a cirurgia. Ela teve de ser acompanhada por especialistas e viajar ao Rio de Janeiro para o tratamento.

Desde a operação até a administração de hormônios é feita por lá. "Em Campo Grande não existem profissionais endocrinologistas habilitados a administrar hormônios em transsexuais", expõe.

Com a documentação da cirurgia em mãos, ela conta que teve a plena convicção para entrar com o pedido de alteração de nome e sexo na Justiça. "Já estava mais do que na hora e os documentos tornavam a situação palpável para que eu ganhasse", justifica.

O primeiro pedido foi indeferido. E a felicidade bateu à porta na semana que encerrou. No recurso, o desembargador Sérgio Martins concedeu o direito de ser ela mesma, no papel.

"Quando eu li na íntegra a decisão, não tenho como descrever a felicidade de ter conseguido. O ser humano que nasceu do sexo masculino e eu agora são as mesmas pessoas. Apenas em um corpo que não condizia com a parte psicológica".

Aos 36 anos ela fecha um ciclo. "São fases. Você nasce, cresce e morre. Este é um ciclo aberto desde o meu nascimento que se fechou. Estou indo para uma nova vida. Uma nova fase onde não vou mais ter de dar explicações. Assim como você vai fechar a sua matéria, eu vou fechar este ciclo. Não posso mais ficar vivendo o passado. Hoje sou autorizada a trocar de nome, de sexo e pronto. É o que importa", sorri.

Tudo é dito com a delicadeza e a sensibilidade de um ser humano que luta para ser, de fato, o que sente. "Eu apenas queria ser quem eu sou. Não me considero transsexual, homem e sim um ser humano feliz".

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