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Capital

A experiência de quem vê, todo dia, acidentes destruírem famílias

Paula Maciulevicius | 01/08/2012 21:50

O trânsito segue uma conta injusta da matemática, onde as somas de vítimas terminam em subtração de vidas

"Não tem como dizer que chega lá e não tem aquele aperto", diz o médico do Samu Luiz Antonio Moreira da Costa. (Foto: Minamar Júnior)
"Não tem como dizer que chega lá e não tem aquele aperto", diz o médico do Samu Luiz Antonio Moreira da Costa. (Foto: Minamar Júnior)

Há sete anos ele acompanha de segunda à sexta-feira, das 7h da manhã às 7h da noite, a rotina de acidentes pelas ruas de Campo Grande. Da conferência de material, atendimento ao chamado de urgência, até a chegada e constatação, muitas vezes, de que não há nada mais há fazer. Com a sirene ligada, pedindo passagem aos veículos, lutando contra o relógio, ele vive no dia-a-dia a epidemia de violência no trânsito e socorrendo cada vez mais vítimas.

Luiz Antonio Moreira da Costa, 58 anos, tem 40 de habilitação e nenhuma cicatriz pelo corpo para contar de um acidente, apesar de viver isso todos os dias. É um dos médicos que implantou o Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) na Capital. E vive a rotina de socorrer vítimas que perdem a vida para o trânsito. Uma conta que não obedece a lógica matemática, onde a soma de acidentes, dia após dia, substrai jovens, crianças, maridos, esposas, pais de família e filhos.

Na prática ele constata o que as estatísticas já revelaram. O crescente número de acidentes que acompanha o passar dos anos. "A cidade cresceu e o número de motociclistas também. Qualquer pessoa pode financiar e as autoescolas dão garantia de aprovação ou seu dinheiro de volta. Isso fez com que caísse muito a qualidade das habilitações", opina quem está do lado de cá do socorro.

Pai de três filhos e avô de dois netos ainda pequenos, ele prega que quando chega no cenário de um acidente, tem que agir tecnicamente, ser um profissional que está ali para atender, minimizar lesões e dar suporte para entregar o paciente com as melhores condições ao hospital de referência. Mas não esconde que se sensibiliza com a dor de quem está sendo atendido.

"Não tem como dizer que chega lá e não tem aquele aperto. Você não pensa é só um corpo. Você tem aquela vítima e tem que pensar que ele tem uma mãe que a espera para almoço, uma esposa que o espera no final do expediente e um filho que o espera para passear. Não tem como não pensar que ali é uma pessoa que tem uma porção de coisas pra fazer amanhã e que foi interrompida".

Em sete anos de dedicação exclusiva ao Samu, vários dos personagens que o Campo Grande News já retratou como protagonistas de acidentes marcaram a vida do socorrista. Mas um, ele conta com tristeza nos olhos e na voz. Uma ocorrência provocada por um coração desumano e inconsequente.

"Quando se trata de criança, eu tenho um neto de 5 anos e uma de 1 ano e meio, não tem como desvincular. Um dos que mais me marcou foi aquela que o cara perseguido pela Polícia, atropelou a criança de propósito para tentar fugir. Chegamos lá e ela estava politraumatizada e agonizando. Demos suporte e entregamos ela com vida na Santa Casa, avisamos que era grave e tinha um equipe a postos, mas ela não resistiu. Era um traumatismo muito grave e foi nitidamente proposital", diz sobre o caso da menina Rayane de Amorim Piccelli Pereira, 6 anos, atropelada no bairro Tarsila do Amaral, em fevereiro deste ano.

O médico é mais conhecido como Tonhão. Apelido que carrega desde os tempos da universidade, quando começou a dar as aulas em cursinhos. "Por quê? Tenho 1,90m e 92 quilos, aí acabou virando Tonhão. Vou levar para o meu epitáfio", comenta. Se formou em Medicina pela UFMS, fez residência em Ginecologia e Obstetrícia, mas desde acadêmico é apaixonado pela emergência em Pronto Socorro. É um homem forte, que já viu muita coisa na vida e consegue não se deixar endurecer, conciliando o lado humano com o médico.

"Quando se trata de crianças e jovens, te machuca muito. Acidente é diferente da morte natural, de um vôzinho que não está mais respondendo e morre. Isso é a lei natural da vida. Acidente não, acidente é terrível. Não tem como se isentar da emoção".

Entre as ocorrências diárias, que não são poucas, ele e a equipe inteira de socorristas e atendentes ainda lidam com a superlotação dos hospitais. "Campo Grande é como um coração de mãe, atende pacientes de todo Estado e até países vizinhos, mas os hospitais não comportam essa demanda. Entra no Pronto Socorro e quando tinha que ficar até 72h e ir para internação, ficam quatro, cinco dias, principalmente na Santa Casa principalmente porque ainda é referência em trauma. Aí não consegue esvaziar".

O problema da disponibilidade de leitos hospitalares deve mudar, assim espera não só o médico do Samu, como todo quadro de saúde da Capital com a abertura do Hospital do Trauma.

Entre deixar um e outro paciente na Santa Casa, o meio tempo até restaurar a ambulância para um próximo atendimento serve para Luiz Antonio, como uma avaliação do atendimento. "A gente sempre pergunta e aquele que eu trouxe ontem? Vou e vejo como está para saber se evoluiu no ponto de vista médico, até para ver se o que a gente está fazendo está certo".

Diante de tantos chamados, uma dúvida não sai da cabeça. Quem vivencia de tão perto, vê o sangue de quem está no chão e a lágrima dos familiares, consegue não levar para casa o que vê no trabalho? "Se cria uma imunidade psíquica. Termina o plantão, eu entrego o telefone funcional e aperto tecla off. Raríssimas vezes eu chego em casa e fico pensando. Mas também tem ótimas lembranças, mas as de trânsito, raramente são boas.

De uma ele não se esquece. Socorreu, foi visitar no hospital e depois foi surpreendido ao ver a recuperação da vítima.

Entre os acidentes que mais marcaram, estão o que matou a menina Rayane. Ela foi atropelada por um homem que fugia da Polícia. (Foto: Minamar Júnior)
Entre os acidentes que mais marcaram, estão o que matou a menina Rayane. Ela foi atropelada por um homem que fugia da Polícia. (Foto: Minamar Júnior)

"Teve uma moça que bateu a moto contra um caminhão. Ela teve a perna toda esmagada e caiu numa grama. Tinha formiga pelos ferimentos. Técnicamente aquela perna estava perdida, fizemos ali uma reconstrução precária, imobilizamos e levamos para a Santa Casa. Depois fui vê-la e ela não perdeu a perna. Para não dizer que não perdeu nada, ela perdeu o dedo mindinho, mas saiu caminhando da Santa Casa", detalha.

"E foi graças ao atendimento, não meu, mas da equipe, do serviço do Pronto Socorro que vai até o local, isso que melhora e muito, as chances do paciente".

Para o trânsito, a lição de quem vive as tragédias que ele, misturado a imprudência, provocam falam tudo. "Todos tinham que entender que eles têm que se cuidar. Na motocicleta eu sempre digo que a lataria é a testa do piloto. Se não tomar cuidado vão se acidentar e continuar se acidentando. Tem que ter isso em mente. Trânsito é moto, carro, bicicleta, pedestre, skate e todo mundo que usa tem que ter noção de que tem condições obrigatórias a serem compartilhadas".

O dia-a-dia pode até fortalecer, mas não torna o profissional que socorre vítimas do trânsito imunes. "É terrível você chegar e explicar para uma mãe, para uma eposa que o filho e o marido faleceram. Mas deixar a emergência, só na hora de aposentar. O serviço de urgência está na minha pele".

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