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Comportamento

No cemitério, a dor da despedida abreviada pelo coronavírus

Velórios de duas horas e limite de pessoas nas capelas são algumas das imposições do vírus que assombra o mundo

Lucas Mamédio | 04/04/2020 07:28
Capela onde corpo é velado no Parque das Primaveras (Foto: Paulo Francis)
Capela onde corpo é velado no Parque das Primaveras (Foto: Paulo Francis)

Seria mais um dia de trabalho para Thereza Christina Lopes, dona do cemitério Parque das Primaveras, em Campo Grande. Ela está acostumada a coordenar os velórios realizados no lugar onde praticamente foi criada e que está sob sua responsabilidade atualmente. Na manhã dessa sexta-feira (03) há apenas um corpo sendo velado nas salas de velório do cemitério: o de sua tia, de 82 anos.

Em meio à cerimônia, Thereza nos recebe, de certa forma, já uma surpresa. Antes mesmo de nos apresentarmos, pede, gentilmente, que mantenhamos a distância de segurança recomendada pelas autoridades de saúde para evitar o contágio do coronavírus. Vimos, já aí, como a crise da doença está afetando nossas vidas em várias dimensões.

Menos doloroso se fosse só a vida, mas não, a morte também está. O corpo da tia de Thereza havia chegado por volta das 8 horas da manhã na capela do velório, às 10 horas, duas horas depois, portando, deveria ser enterrada. Essa medida segue uma recomendação federal de que os velórios durem 2 horas e que não tenha mais de 10 pessoas reunidas dentro da capela.

A responsável por recomendar a muitos familiares para não irem ao velório foi Thereza. “É muito difícil, temos mais de 30 familiares enterrados nesse cemitério e nunca nada parecido nos aconteceu. Ainda bem que muitos entenderam e não vieram, mesmo sentindo a dor de perder alguém querido”.

Thereza ficou com a dolorosa missão de coordenar o velório da própria tia (Foto: Paulo Francis)
Thereza ficou com a dolorosa missão de coordenar o velório da própria tia (Foto: Paulo Francis)

Havia, claramente, mais de 10 pessoas no velório, mas não dentro da capela. Muitas estavam de máscara, conversando de longe.

“A gente tenta explicar, mas minha mãe por exemplo, um ano mais velha que minha tia só, viveram mais de 80 anos juntas, grudadas, como fazer entender? Ela abraçou quem tinha que abraçar, não posso fazer nada quanto a isso”.

Parece ser impossível e, em alguma medida, até injusto, privá-la desse momento. De receber e dar o alento a filhos, sobrinhos, netos e amigos. Qual preço a crise do coronavírus está cobrando da gente?

Enquanto conversávamos, passa a mãe de Thereza, com ar sereno, altiva, ao lado de um padre e outro familiar. Estavam indo, ao que parecia, até o jazigo onde sua irmã seria enterrada.

Mãe de Thereza indo visitar o jazigo da irmã (Foto: Paulo Francis)
Mãe de Thereza indo visitar o jazigo da irmã (Foto: Paulo Francis)

Essa é única possibilidade de ir até esses locais por enquanto. Ela nos explica que não está mais autorizada a entrada dos familiares nos jazigos para visitas simples. Um pouco depois, um carro tenta o acesso, ela vai até o motorista e informa que não pode entrar. “Está vendo, era um primo meu, que provavelmente iria aproveitar pra visitar algum parente”, diz ela, depois de ser obrigada a impedir mais um familiar de fazer algo antes natural e que agora não é mais.

A tia de Thereza morreu em decorrência de complicações causadas por um câncer no pâncreas. No último mês, com quadro se agravando e com muitas dores, encontrou dificuldades para ser medicada em hospitais, porque eles adotaram também medidas restritivas.

“O coronavírus afetou a vida da minha tia mesmo antes desse momento”.

Thereza repete mais de uma vez que tem uma relação diferente com a vida e com a morte. “Sou muito prática, faço isso todos os dias, mas situações como essa, impossível não sentir dor”. Dor potencializada pela relação próxima com a tia.

É então que Thereza parece esmorecer em meio às lembranças de uma vida almoçando toda semana com a tia, tendo-a como uma segunda mãe, considerando as primas como irmãs, vendo a mãe perder mais um irmão, porque outros dois já se foram. Os olhos lacrimejam num breve momento de reflexão. Ela não falava mais comigo, falava com ela mesma, com a tia, com as lembranças.

Visitas simples aos jazigos estão proibidas (Foto: Paulo Francis)
Visitas simples aos jazigos estão proibidas (Foto: Paulo Francis)

Diante da situação, já não me senti no direito de tirar mais tempo dela com a tia, com a mãe e todos que estavam ali. Aquelas eram as duas horas que eles tinham para se despedirem, as horas que o vírus, que apavora o mundo, permitiu. Fomos embora.

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