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Comportamento

Corrente de moto é suspensório para quem perdeu sanidade, mas não o talento

Nas ruas desde que fugiu de casa, aos 14 anos, Miller é na verdade Cléber Miguel da Silva, conhecido pelo estilo único

Kimberly Teodoro | 11/10/2018 08:06
Miller, é na verdade Cléber Miguel da Silva, morador de rua que chama a atenção pelo estilo único (Foto: Kísie Ainoã)
Miller, é na verdade Cléber Miguel da Silva, morador de rua que chama a atenção pelo estilo único (Foto: Kísie Ainoã)

Correntes de moto no lugar dos suspensórios e um corte de cabelo moícano, raspado nas laterais, são características que chamam a atenção de quem circula pelo Centro para o morador de rua que se apresenta como Miller. Durante a conversa na calçada da Rua Aquidauana, se destacam as mãos muito sujas de tinta e o rosto com marcas de 30 anos sob o sol.

Ali na região da Avenida Marechal Cândido Mariano Rondon, Miller é uma figura fácil de encontrar quando se pergunta pelo “cara das correntes”. O estilão de passarela underground, lembra modelos de grifes urbanas, mas é 100% criado por ele, na rua. Sem teto, o guarda-roupa é o carrinho de compras, que também serve para recolher entulhos que na mão dele viram arte.

Arredio, nem sempre é possível conversar, mas desta vez, tivemos sorte. 

Miller vive da arte que faz nas ruas e da venda de latinhas que encontra pela cidade (Foto: Kísie Ainoã)
Miller vive da arte que faz nas ruas e da venda de latinhas que encontra pela cidade (Foto: Kísie Ainoã)

“Sei quem é, sim. Não sei o nome dele, mas do pessoal que fica na antiga rodoviária ele é o mais tranquilo”, diz um frentista do posto de gasolina na avenida. “Nunca dá trabalho pra gente, mas estava aqui agora mesmo. Ele subiu a rua, mas nós não vimos para onde foi”, diz o outro.

Poucas quadras acima, ainda buscando o paradeiro do morador de rua estiloso, um senhor que estava no bar na companhia do filho, faz uma indagação tristes, logo de cara e sem ensaio: “Ele roubou você, moça?”. 

A resposta veio com mais algumas conversas com os comerciantes locais, que o descrevem como um “bom moço”, que tem talento e não causa problema, mas que infelizmente, "é mais um artista perdido para os vícios”, analisa um dos comerciantes da região.

Fã de Ramones, faz questão de imitar a pose da capa do disco "Rocket to Russia" para a foto (Foto: Kimberly Teodoro)
Fã de Ramones, faz questão de imitar a pose da capa do disco "Rocket to Russia" para a foto (Foto: Kimberly Teodoro)

Miller, é na verdade Cleber Miguel da Silva, que mora na rua desde que fugiu de casa aos 14 anos. Até então, morava com a mãe e com o padrasto. Diz que ajudava na renda de casa catando latinhas e papelão na rua, atividade que faz até hoje.

Sem infância, Miller conta ter frequentado a escola só até a 4º série do Ensino Fundamental. Para ele, a maior lembrança daquela época é ver outras crianças brincando na rua, sem poder se juntar a elas. “É um vazio que ficou, e até hoje eu bebo para preencher, mas nada preenche”, comenta de maneira vaga, sem voltar a tocar no assunto.

Hoje, a família de Miller é Patricia. Esposa, namorada e companheira de quem ele fala com carinho. Os dois se encontraram na rua há quase 2 anos e desde então estão em “um relacionamento que só a palavra namoro não descreve, é uma amizade maior que qualquer outra coisa”, explica.

Fã de rock, a pose para foto é encostada na parede em uma imitação da capa do disco dos Ramones. “Sabe? aquela capa que está todo mundo enquadrado na parede”, lembra.

Miller frequenta os shows da Morada dos Baís, que tem música toda quarta-feira, e  também costuma ficar do lado de fora das casas noturnas que tocam rock quando fica sabendo de apresentações ao vivo.

Miller mostra peça que fez em pedaço de cerâmica que encontrou no lixo. (Foto: Kísie Ainoã)
Miller mostra peça que fez em pedaço de cerâmica que encontrou no lixo. (Foto: Kísie Ainoã)

Além das lembranças amargas, o penteado descolado é outra coisa que Miller carrega há tanto tempo que nem se lembra de quando, exatamente, começou a usar. “Nunca um barbeiro tocou na minha cabeça, eu mesmo é que faço com a gilete”, explica, ao falar com um pouco de vaidade do corte que ele mantém independente do tempo. 

Grande parte das roupas vem de doações que ele garimpa cuidadosamente. A exceção é a bolsa feminina que ele leva sempre junto ao corpo e não mostra o conteúdo de jeito nenhum, mas que ele jura conter apenas o material de trabalho: azulejos, tinta e um pano.

Acessório principal do estilo único de Miller, as correntes de moto, ao contrário do que muita gente pensa, não são decorativas. Ele as usa há tanto tempo que são praticamente uma extensão do corpo, uma garantia de segurança. “Você já passou a noite na rua? Quando os playboyzinhos ficam entediados e altos com a cachaça, é atrás da gente que eles vem de pau, desce 3, 4 de um carro e vem pra cima de uma pessoa só”, denuncia, como se já encarasse como rotina em Campo Grande.

“Aqui fora as pessoas não são boas, bondade é uma coisa que a gente faz porque quer fazer, não é porque está esperando algo em troca. As pessoas fazem caridade por obrigação, dão roupa, as moedas quando sobra. São poucas as que realmente querem ajudar porque são boas. Quando eu morrer, não sei para onde vou, nem se fui bom, mas sei que tratei as pessoas como queria que elas me tratassem”, reflete.

Passando quase despercebido, outro item que Miller não tira de jeito nenhum é o bracelete feito por ele mesmo com uma chapa de metal que saiu dos trilhos do trem, acompanhado pelas palavras tatuadas no pulso: “Deus criou os loucos para enganar os sábios”, frase tirada da bíblia, apesar de nenhum apego por religião. “Qual dos dois eu sou? Ninguém sabe, as pessoas que acham que sabem são os maiores loucos da história”.

Finalizo a entrevista perguntando como ele se imagina no futuro e se já se pensou em algum outro lugar, a resposta vem no tom leve dos sábios, com a coerência dos loucos: “Eu vivo com o que Deus me dá todos os dias e o dia de hoje ainda falta muito para acabar.”

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