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Cabeças cortadas

Por Guido Bilharinho | 13/02/2013 15:13

CABEÇAS CORTADAS
Alusões e Referências

Guido Bilharinho

De Barravento (1961) à Idade da Terra (1980), Gláuber Rocha construiu filmografia autoral, nunca desviando-se desse objetivo para tentar conquistar plateias e auferir rendimentos.
A circunstância de sua obra conter filmes desiguais não empana nem afeta a diretiva artística, sendo fato ocorrente com a maioria dos autores, senão com todos.
O importante, no caso, é, além da qualidade de seus melhores filmes, o propósito que perseguiu, que nem o exílio nem as dificuldades de produção abateram, não obstante o tenham prejudicado.
Na Espanha, Gláuber realizou Cabeças Cortadas (Cabezas Cortadas), em 1971.
Todavia, não é filme, tematicamente, de linhagem diversa da que vinha praticando no Brasil. Suas apreensões e perplexidades (estas até agravadas) continuaram as mesmas na contextualização de suas diretrizes básicas, a saga nordestina (Deus e o Diabo na Terra do Sol, 1964; O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, 1969) e o destino nacional (Terra em Transe, 1967).
Cabeças Cortadas insere-se nessa última direção ao focalizar o país de Eldorado, sem, contudo, restringir-se aos limites lógico-convencionais da narrativa. Antes que subvertê-la, a constrói como paráfrase da realidade, incidindo no registro mitológico de alusões e projeções superadoras de suas demarcações e imposições.
Não se satisfaz e menos ainda se contenta e se confina aos lindes materiais. Extrapola-os surrealisticamente, estabelecendo situações apenas alusivas ou alegóricas.
As sequências não se encandeiam num inventário lógico cronológico, mas, referencial, exigindo leitura decodificadora.
Se algumas cenas parecem gratuitas ou arbitrárias, apenas fruto de delírio imaginativo (os atos da personagem com a ceifa, por exemplo), que ao invés de significar a morte, inicialmente pratica milagres, sua simbologia remete a crenças milenares, oriundas das civilizações da antiguidade, herdadas pelo Ocidente, que as assimila, incorporando-as a seu arcabouço mental, idealizando-as.
Nesse passo, como na estrutura do filme, Gláuber parafraseia certas inquietações de Buñuel, externalizadas desde L´Age d´Or (Idem, França, 1930) e encontráveis, entre outros filmes, em O Discreto Charme da Burguesia (Le Charme Discret de la Bourgeoisie, França / Espanha/Italia, 1972).
Do primeiro, aufere a concepção e prática surrealista e, antes deste último, mas quase simultaneamente, manifesta a preocupação (ou angústia) temática, construindo uma mitopolítica sul-americana de inexcedível beleza composicional e aguda crítica sócio-econômica, numa sublimação da cotidianidade e do prosaísmo do real, bipartindo-se em realidade visualizada esbatida na paisagem agreste e dura da Espanha (o filme, suas personagens, décors, locações, paisagens, relacionamentos, diálogos e ações das personagens) e na construção alusiva (e conteúdo das imagens, dos diálogos e dos atos dos figurantes).
As tomadas e cenas compõem planos, cujo enquadramento, posição dos atores, dos objetos e construções obedecem à consciente organização pictórico-arquitetural, instrumentalizada a câmera não apenas como captadora de imagens, mas criadora de refinamento plástico-visual e veiculadora de concepções e formulações intelectuais.
As personagens e seus gestos, os objetos e suas posições, as paisagens e eventuais edificações não se distribuem nem se postam nos quadros fílmicos aleatoriamente, mas, obedientes a planejamento orientado para atingir perfeição imagética.


O objetivo não é contar a (ou uma) estória, mas, refletir e produzir beleza sígnica em cima do (ou sobre o) tema.

(do livro Seis Cineastas Brasileiros, editado pelo Instituto Triangulino de Cultura em 2012-www.institutotriangulino.wordpress.com)

(*)Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba e editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000, sendo ainda autor de livros de literatura, cinema e história regional e nacional.
(Publicação autorizada pelo autor)

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