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Como enfrentar os desafios contemporâneos da comunicação?

Por Irene Machado (*) | 17/08/2016 14:50

Quanto mais a comunicação se faz presente como desafio às relações interculturais e ao próprio redesenho geopolítico do mundo, menos espaços de estudo teórico se encontram abertos ao debate.

Nos cursos de graduação, a disciplina de Teoria(s) da Comunicação está desaparecendo dos currículos. Nos programas de pós-graduação, Epistemologia da Comunicação já é coisa do passado. Estudiosos do campo resistem em grupos de pesquisa e também nos encontros científicos.

Não deixa de ser surpreendente tal situação num país em que os cursos de comunicação foram instituídos em 1964, primeiro na Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI), no então Estado da Guanabara, e depois, mas no mesmo ano, na Universidade de Brasília.

Ambos impulsionados pela necessidade de incorporar a comunicação emergente com os meios de massa bem como seus produtos culturais. Contudo, já na virada do século, as próprias Escolas de Comunicação Social começam a se concentrar nas habilitações específicas.

Resultado: o fenômeno fundador da cultura humana – a comunicação – perde espaços de reflexão formadores da crítica num momento em que deveria ocorrer o contrário.

Já houve quem afirmasse que as áreas científicas, tanto da biologia quanto da tecnologia, estão caminhando e cumprindo seu papel. Os grandes desafios agora estão emergindo da área social, a começar pela difícil tarefa de descobrir como a comunicação com seus meios tão variados pode aproximar povos em deslocamento e falando línguas radicalmente distintas.

Afinal, impossível ignorar que a atual onda migratória acontece motivada pelos confrontos políticos, mas não só por eles. Informações em circulação nos meios de comunicação e crescimento da noção de que a vivência contemporânea se desenrola em rede e em fluxo transformam qualquer rota migratória numa aventura épica.

O quadro evidencia complexidade e demanda investimentos teóricos de várias áreas. Inútil conferir a um único campo tarefa de tão intrincados atravessamentos, o que não justifica o fim dos espaços de reflexão.

Na verdade, o cenário aqui esboçado se ampara no argumento de que os desafios da comunicação necessitam ampliação do escopo do próprio conceito de teoria. Se, quando da implantação dos meios eletrônicos de comunicação, observações a distância permitiram a formulação de um campo conceitual que atingiu diferentes áreas, a onda midiática estimulada pelos sistemas digitais móveis demanda envolvimento e participação.

É chegada a hora de revisão crítica dos conceitos e das teorias. Redimensionar conceitos, a começar pela noção de informação e da constelação que gravita em seu entorno, tais como meio, veículo, transmissão, mensagem, emissão-recepção, codificação-decodificação, entropia, ruído, representa uma possibilidade qualitativa de análise diante do novo cenário.

É pela análise comparativa que podem se manifestar indícios favoráveis ao entendimento da derrocada dos media power e a consequente dominação dos processos de mediação traduzidos em midiatização. A sociedade do espetáculo ainda está em cena, mas há movimentos que projetam um quadro interativo de relações.

Tudo indica que a demanda é, pois, por mais e não por menos teoria. Afinal, o edifício teórico consagrado no contexto dos meios de massa tem muito pouco a dizer ao ambiente formado por redes de comunicação e pelas interações sociais em voga.

Daí que um dos requisitos elementares ao estudo das mediações emergentes seja o envolvimento e a ulterior experimentação de ideias capazes de gerar o objeto juntamente com a investigação – ou a teoria.

Nesse sentido, reconhecemos que muito do pensamento teórico da comunicação consagrado pelos meios de massa caminha para o anacronismo. Nem por isso, o estudo teórico perdeu sua propriedade.

Qualquer revisão crítica para garantir um mínimo de coerência não pode prescindir de reconhecimento das transformações das ideias teóricas. Não basta, pois, reiterar as mudanças no modus operandi apenas dos operadores técnicos. É necessário reconhecer que os conceitos podem não sustentar os modelos cognitivos em trânsito. Exemplos?

Como continuar denominando as experiências comunicativas atuais à luz de um jargão anacrônico da transmissão e da emissão-e-recepção, caso das interações em deslocamentos migratórios e ativismos políticos?

De qual recepção se trata quando se toma a onda de protestos que se alastraram de modo incontrolável a partir de 2008 e tomou conta das metrópoles do mundo, com pessoas ocupando as ruas e assumindo a autoria de ações e interações que se faziam e se refaziam a cada fluxo?

No Brasil, as tentativas de análise das jornadas de junho de 2013 convocavam todo um repertório ainda fortemente marcado pela consagrada noção de receptor em processo de transmissão de mensagem. Prova disso é que uma pergunta repetida insistentemente na imprensa nacional e internacional foi: “Qual é a mensagem das ruas?”.

Buscar uma resposta-síntese iluminadora para uma ação política traduzia uma necessidade. Contudo, uma mensagem dessa natureza – se houvesse – seria uma expressão distanciada da emergência do acontecimento. Havia uma trama muito bem articulada a demandar leituras mergulhadas no presente das ocorrências.

Numa de suas aulas como primeiro professor da disciplina de Teoria da Comunicação na ESDI em 1964, Décio Pignatari – também professor da FAU-USP, falecido em 2012 e meu professor da mesma disciplina no Mestrado em Comunicação e Semiótica da PUC-SP em 1980 – propunha muitas provocações a seus alunos. Numa delas perguntava: sabemos ler o mundo? Propunha a leitura do mundo no intrincado relacionamento dos sistemas de signos em escala sempre crescente de interações perturbadoras.

Com base na teoria da informação e da comunicação, em voga na época, Pignatari conduzia o exame do uso da linguagem em seu movimento ambivalente. Do mesmo modo como o uso da linguagem pode levar à homogeneização de repertório, a incessante renovação dos modos de codificação da informação, da produção de metalinguagem e das transposições semióticas aponta um caminho para a leitura das novas configurações.

Tal raciocínio pode nos ajudar a compreender teoricamente os movimentos sociais explosivos que acontecem simultaneamente à expansão das formas de comunicação nas diferentes esferas de sua ocorrência. Afinal é de (in)formação que se trata e para isso as teorias da comunicação continuam a prestar sua contribuição.

Vale ressaltar que a condição de qualquer participação social efetiva exige muito mais do que a habilidade do usuário ou da competência para o uso do código. É preciso dominar repertórios através de aprendizado, sobretudo das linguagens icônicas dos sistemas digitais. Não se trata de atrelar a teoria a objetos, mas de formular modelos cognitivos sem os quais nenhuma consciência crítica pode florescer para ler o mundo.

(*) Irene Machado é professora livre docente da ECA-USP

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