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Como o “Fora Temer” se encaixa nos jogos olímpicos do Rio

Por Katia Rubio (*) | 20/08/2016 10:16

A estrutura do Movimento Olímpico não foi montada para ser democrática. Quando Pierre de Coubertin convidou amigos e conhecidos aristocratas para formar o Comitê Olímpico Internacional no final do século 19 não tinha a intenção de fazer daquele grupo um modelo para a sociedade.

Eles vieram de toda a Europa, tinham ligação com o esporte e desejavam competir para mostrar suas habilidades que afirmavam sua masculinidade. Não desejava fazer política. Acreditava que era possível conduzir o mundo do esporte à margem dos conflitos e interesses internacionais.

Estruturado o COI (Comitê Olímpico Internacional) em 1894, logo Coubertin percebeu que sua empreitada não seria tão fácil quanto imaginava. Para realizar os jogos olímpicos seria necessário conceder, negociar, conchavar e praticar as mesmas estratégias que se empregam nas relações internacionais como um todo.

Já na organização dos jogos olímpicos de 1896, o barão praticou toda a sorte de política para realizar aqueles que viriam a ser os primeiros jogos da era moderna. Entregou a presidência do COI a um grego e aceitou a competição em Atenas, concedendo assim aos mentores dos jogos a honra dessa realização.

Diante da falta de dinheiro para a realização das obras necessárias, contou com o apoio de um armador grego para que tudo acontecesse a contento.

Mas as concessões não pararam por aí. Ao longo do século 20 foram inúmeras as vezes em que se afirmou que política e esporte não se misturavam. Ainda assim, atletas só podiam participar dos jogos olímpicos sob a bandeira de Estados Nacionais, cujas fronteiras se mostraram fluidas por causa das duas Grandes Guerras ou de guerras regionais que reconfiguraram mapas diversas vezes.

Esse discurso também foi mantido mesmo quando países resolveram boicotar a competição por causa do apartheid na África do Sul, pelo reconhecimento de Taiwan como país ou pela participação em guerras. O fato é que mesmo diante da negação de um fato constatável os mandatários do Movimento Olímpico mantiveram o discurso de distanciamento entre esporte e política até chegar ao século 21.

Com muita resistência as mulheres pouco a pouco foram sendo aceitas nas competições, um gesto absolutamente político, embora disfarçado numa questão de gênero. Até mesmo o profissionalismo, tão duramente defendido pelos puristas olímpicos, caiu por terra no final dos anos 1980, indicando ao mundo que o esporte era um negócio e uma profissão como quaisquer outros em um mundo globalizado. Mas a política era ainda um tema tabu.

Demorou mais de um século para que o discurso e a prática sobre esporte e política fossem alterados. E o cenário para a apresentação dessa condição aconteceu no Rio de Janeiro, em 2016.

Sem dúvida, isso se dá em função de ThomasBach, que sem muito barulho assumiu a presidência do COI e resolveu restabelecer a ordem, no mais nobre espírito olímpico. Preocupado com os rumos que a entidade tomava desde a década de 1980 pôs-se a trabalhar buscando adequar o discurso e a ação olímpica aos novos tempos.

Atento às negociações que ocorrem para a escolha das sedes olímpicas de verão e de inverno, que facilitam e ampliam a corrupção já estabelecida, promoveu um movimento pela transparência desse processo e de outras que envolvem a poderosa marca com os cinco anéis.

À frente de sua primeira edição olímpica de verão como presidente mostrou ao mundo sua disposição de falar de política ao permitir que refugiados com índices conquistados viessem competir mesmo sem a bandeira de seus países.

Fato inédito na história, essa decisão abre as portas para uma reconfiguração na geopolítica olímpica submetida a uma camisa de força que passa pela organização dos Comitês Olímpicos Nacionais e Federações e Confederações nacionais e internacionais, duramente criticadas nos últimos anos por conta de gestões centralizadoras e corruptas que levam a um descrédito moral do Movimento Olímpico como um todo.

Chama também atenção a homenagem prestada aos atletas e técnicos mortos no atentado à Vila Olímpica de Munique, em 1972. Solicitação feita desde o incidente pela família dos falecidos e nunca antes atendida, era considerada pelos presidentes anteriores como um risco ao discurso de que política e esporte não se misturam. Justamente um alemão permite a homenagem durante a realização dos jogos no Rio de Janeiro e permite que familiares das vítimas se manifestem, concedendo à cerimônia uma clara conotação política ao incidente passado e ao ato em si.

Importante frisar a postura de ThomasBach ao longo do processo de impeachment que antecedeu os jogos. Foi polido em todas as vezes que foi abordado sobre o tema e procurou ser positivo quando indagado sobre a influência de todo aquele processo na organização e realização dos jogos.

Mais preocupado que ele estavam as autoridades brasileiras que tentaram impedir que as manifestações relacionadas com o momento político brasileiro invadissem as arenas. Tanto assim que o Comitê Rio 2016 entrou na justiça para fazer valer a Lei da Olimpíada, que dispunha sobre as condições para o uso de bandeiras, cartazes ou manifestações nos locais de competição.

Embora ressalvasse o direito constitucional ao livre exercício de manifestação e à plena liberdade de expressão em defesa da dignidade da pessoa humana, espectadores que se manifestaram nos locais de competição nos primeiros dias foram expulsos e correram o risco de pagar multa de R$ 10 mil, até que uma liminar pôs por terra a proibição.

Ainda assim assisti a um episódio com um de meus orientandos, que levava um adesivo “Fora Temer” em seu boné. Passou pelo segurança de um recinto sem que fosse percebido o desagravo.

A “desfeita” só foi notada no momento da execução do hino nacional e prontamente começou um movimento de repressão percebido nos gestos, olhares e conversas à boca pequena. Tudo me fez crer que se ele ousasse levantar a voz em algum momento da fala oficial seria retirado à força do local, fato que não chegou a ocorrer.

Ou seja, enquanto nas instâncias superiores do olimpismo os ventos sopram rumo ao século 22, nas esferas nacionais ainda prevalece o ranço da política local sustentada nos jogos de poder pautados no casuísmo e interesses próprios.

(*) Katia Rubio é professora associada da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE-USP) e membro da Academia Olímpica Brasileira

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