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Direito de protestar só subsiste em ambiente democrático

Por Adriana Cecilio (*) | 25/03/2024 13:30

O direito de manifestação, descrito no artigo 5º, inciso XVI, da Constituiçãol, descreve o direito à liberdade de manifestar-se, seja contrariamente ou não, a determinada ação, situação ou pessoa específica. De todos os direitos fundamentais, este é, sem dúvida, um dos únicos que só pode ser exercido plenamente no bojo de uma democracia.

Os demais direitos fundamentais, nalguma medida, subsistem, por vezes, com diversas restrições, mas, ainda assim, podem ser invocados. O direito de reunir-se e realizar um protesto só subsiste em ambiente democrático.

É preciso diferenciar o direito de manifestação descrito no artigo 5º, inciso IV: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, do direito de manifestação pública enquanto ato político, disposto o artigo 5º, inciso XVI:

“todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;”.

O primeiro garante a liberdade de manifestar o seu pensamento, suas ideias, ainda que essas possam desagradar outras pessoas. Contudo, o Supremo Tribunal Federal já se posicionou no sentido de esclarecer que a liberdade de pensamento encontra a sua limitação quando o discurso enseja um risco à vida de outras pessoas. Ou seja, você não pode usar o discurso da liberdade de pensamento para incitar o ódio ou qualquer tipo de violência.

Em mesmo sentido lógico, é razoável afirmar que não está coberto pelo manto da liberdade de pensamento defender ideias que atentem diretamente contra os princípios estabelecidos na Constituição Federal, por exemplo, o direito à igualdade de gênero entre homens e mulheres.

Ainda, a liberdade de expressão, como todos os direitos fundamentais, possui um caráter dúplice. É um direito – você pode dizer o que quiser, mas é um dever — você necessariamente precisa assumir a responsabilidade pelo que falou. E, por vezes, o ônus de expressar seus posicionamentos acarreta uma incompatibilidade da sua presença em determinados espaços.

Quanto ao direito de manifestação já mencionado, é essencial explicar que quando o texto descreve “desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local” os constituintes originários estavam se referindo à ideia de não reunir no mesmo local grupos políticos que possuem pautas antagônicas.

Por exemplo, caso um grupo de apoiadores do ex-presidente convocassem um ato no dia em que foi proclamado o resultado das eleições, cientes de que quem estaria na avenida Paulista seriam os apoiadores do presidente Lula, a convocação esbarraria na vedação constitucional, que existe para evitar embates entre grupos políticos rivais.

Portanto, quando o texto se refere à palavra reunião, o termo deve ser lido como ato político, especificamente, não qualquer evento público ou privado, seja de caráter profissional ou social. É totalmente legítimo manifestar-se contrariamente à realização de um evento que fere os princípios dos manifestantes ou que seja incompatível com o público do evento, ainda que não em sua totalidade.

Direito de resistência - Uma vez mais exemplificando, a bem de não restar dúvidas. Imaginem convidar um marqueteiro de uma grande rede de pecuaristas para palestrar em um evento direcionado ao público vegano. Não importa o conteúdo que poderia ser trazido pelo profissional.

O seu lugar, obviamente, não seria lá, porque suas práticas, seu pensamento e suas crenças são ofensivas ao público presente. Tal convite, por certo, seria um erro crasso por parte dos organizadores, que demonstrariam um completo desrespeito com as pessoas às quais destinar-se-ia o evento.

Em uma situação como essa seria absolutamente legítimo que os participantes do evento protestassem contra a presença dessa figura, buscando inviabilizar sua exposição. É precisamente para uma situação como essa que existe a previsão constitucional do direito à manifestação. Não seria necessário constar no rol de direitos fundamentais o direito à liberdade de manifestação, se se tratasse de aplaudir pessoas.

A Constituição assegura o direito de resistência, de oposição, de demonstrar descontentamento, de constranger pessoas públicas, especialmente aquelas que, com seus posicionamentos, afrontam direitos de grupos vulneráveis.

O direito de resistência encontra suas raízes desde a antiguidade, podendo-se destacar a obra de Sófocles, Antígona, como uma referência ao ato de resistir como um direito natural a todo ser humano. Poder resistir a ações com as quais discordamos é um elemento central para identificar se estamos vivendo em uma democracia. Nesse sentido, ser uma pessoa democrática é saber aceitar críticas.

Democracia é uma palavra com significados diversos, mas, nesse contexto, estamos tratando sobre democracia enquanto cultura que visa proporcionar liberdade e igualdade. Falar sobre liberdade em todas as suas dimensões demandaria um texto autônomo.

Considerando que felizmente vivemos em um Estado democrático de Direito, é suficiente tomarmos por empréstimo o pensamento de Montesquieu e afirmar que “liberdade é o direito de fazer tudo que as leis permitem”. Exercer o sagrado direito constitucional à manifestação é algo próprio da convivência democrática.

Como dizer se algo é democrático ou não? É preciso responder as seguintes perguntas: a Constituição permite tal ato? O exercício do direito está ligado à preservação da própria democracia, em relação aos seus valores mais caros: liberdade e igualdade? Se as duas respostas forem sim, a ação é democrática!

Para falar sobre democracia, é preciso compreender o que significa democracia. Para querer realmente compreender, é preciso gostar da democracia. E quem gosta da democracia zela por ela, prezando por seus valores mais altivos: liberdade e igualdade.

(*) Adriana Cecilio é advogada, especialista e mestra em Direito Constitucional, professora de Direito Constitucional e diretora nacional da Coalizão Nacional de Mulheres.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

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