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Lugar de Negro, 30 anos depois

Por Nelson Fernando Inocêncio da Silva* | 20/01/2012 07:05

Quando Lélia Gonzáles e Carlos Hasenbalg publicaram um pequeno livro intitulado Lugar de Negro, em 1982, abordando o racismo e os problemas dele decorrentes, denunciaram a crença, corriqueira no Brasil, de que negros e negras deveriam peremptoriamente ocupar os espaços e as funções mais desvalorizados possíveis. No inicio dos anos 1980, os autores tentavam diagnosticar os efeitos perversos da violência racial, alimentada por um imaginário contaminado pelo legado da escravidão.

Trinta anos depois, a atualidade desse texto é constatada por cenas estarrecedoras como as que foram postadas na internet recentemente, mostrando a ação da Polícia Militar no campus Butantã da Universidade de São Paulo. Uma aparente negociação entre membros da tropa e universitários que ocupavam um dos prédios da USP, onde decidiram instalar o DCE, terminou com um rompante do sargento André Luis Ferreira, tamanho foi o seu mal-estar ante a presença naquele espaço de Nicolas Menezes Barreto, graduando do curso de Ciências da Natureza daquela instituição.

O policial parece ter detectado um corpo estranho no ambiente e logo tratou de tomar suas providências: colocar em cheque a legitimidade do rapaz e agredi-lo fisicamente diante dos colegas. Um espetáculo humilhante. Nicolas reconhece que era o único universitário de tez escura a participar daquilo que seria supostamente um diálogo. Não levou muito tempo para perceber que sua presença no recinto era incômoda.

Esse episódio merece nossa atenção. Talvez Nicolas esteja equivocado ao alegar que aquele ato se constituía em uma prática de racismo implícito por parte do policial.

O ocorrido foi uma manifestação explicita de intolerância que reforça as noções de que espaços de prestígio como a USP não são para negros. Incidimos em erro quando tendemos a atribuir a ações desmesuradas como esta um caráter particular, individual. O imaginário de que falavam Gonzales e Hasenbalg está aí, com sua dimensão ideológica, insuflando posturas reacionárias contra quaisquer políticas públicas que vislumbrem uma participação maior de tantos Nicolas nos campi das universidades brasileiras.

O afastamento do sargento, bem como de seu colega, o soldado Rafael Ribeiro Fazolin, por desvio de conduta, obviamente cumpre uma função estratégica diante da evidência do registro das imagens capturadas. Todavia, reduzir o problema a um ou dois membros da corporação é uma simplificação absurda. A questão está relacionada a um ethos que norteia o aparato de segurança. Pessoas negras tem sido historicamente o alvo preferencial das abordagens policiais, independente da condição social.

Para os alegres equivocados, como diria o saudoso Abdias do Nascimento, que persistem em dizer que tudo é questão de classe, fica mais um desafio. Ser aluno negro da universidade mais renomada do país e portanto pertencer a uma elite cultural não garante qualquer blindagem, não impede que o olho clínico do racismo identifique aqui e ali as pessoas que supostamente deveriam exercer outras atividades que não as intelectuais.

Aos docentes e pesquisadores que ainda investem no diálogo entre universidade e sociedade o referido acontecimento é um convite à reflexão sobre relações raciais no Brasil. Algo que grande parte da elite nacional terminantemente recusa-se a fazer.

(*) Nelson Fernando Inocêncio da Silva é professor do Departamento de Artes Visuais, do Instituto de Artes, da Universidade de Brasília e coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab/Ceam).

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