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Presunção de inocência

Por Leonardo Avelino Duarte (*) | 22/02/2016 08:32

Não sou criminalista. Pouco advoguei em processos penais. Tampouco me filio à corrente que daqueles que acham que os Tribunais Constitucionais não podem se atrever a elaborarem complexas inovações jurídicas para implementar a vontade da Constituição. Não acho que a corte constitucional deve ser tímida, alterando só muito esporadicamente a sua jurisprudência.

Porém, em seu trabalho de amoldar a vontade da constituição no tecido jurídico-político de um país, as cortes constitucionais devem tomar o cuidado de não extrapolarem dos limites que as palavras possuem, dando a elas novos significado, transformando-se em legisladores constitucionais – e não em interpretes da constituição, como devem ser.

Em inédita decisão, no dia 17 de fevereiro último, o STF alterou profundamente o significado do art. 5, LVII da CF, onde registra que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. De fato, ao decidir que o acusado pode ser preso após o julgamento de 2o instância (nos Tribunais de Justiça), sem que recursos excepcionais em Brasília sejam apreciados, abriu-se (mais ainda) a possibilidade de que um inocente cumpra pena.

Se por um lado é absoluta verdade de que há recursos demais no sistema processual brasileiro, e que, no âmbito penal, muitos processos não têm qualquer efetividade porque perde-se muito tempo até o trânsito em julgado da ação - gerando o que os juristas chamam de prescrição - por outro é inegável que boa parcela desses recursos em Brasília são providos, isto é, demonstram que houve erro ou no julgamento, ou na investigação, ou em ambos, e que o acusado era inocente.

Assim, ao permitir que o réu seja aprisionado já antes da análise destes recursos em Brasília, faculta-se que na prática possa existir um inocente cumprindo pena. Em termos simples, o anseio de se combater a impunidade prevaleceu sobre a presunção de inocência.

Este precedente, contudo, gera inúmeras perplexidades jurídicas – e dificilmente diminuirá a sensação de impunidade. É que, na prática – agora mais do que nunca – uma pessoa assumidamente ‘culpada’ pode se livrar da cadeia, tendo feito, por exemplo, uma delação premiada, enquanto outra, que se deve ‘presumir inocente’, pode passar seu tempo indefinidamente em uma prisão preventiva ou aguardando o julgamento de seu apelo extraordinário na Capital Federal.

O pior sentimento, porém, é o de enfraquecimento da Constituição, que sofre inegável erosão semântica com essa possiblidade de execução provisória da pena. Não dá para casar o art. 5o, LVII - que, com todas as letras, diz que o acusado “só será considerado culpado com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” - com a cumprimento da pena antes da apreciação do recurso em Brasília.

Dá ao cidadão a impressão de que a orientação dos Tribunais pode mudar de acordo com a pressão das ruas, o que não pode ocorrer. Sem embargo, como se diz nos corredores dos fóruns, antigamente, o juiz corajoso condenava o réu acusado da prática de crime. Hoje, o magistrado corajoso absolve-o, sabendo que, neste caso, será criticado pelas redes sociais, pela imprensa e pela sociedade.

Duas coisas importantes devem ser registadas: a primeira é a de que o direito constitucional (e o direito público em geral) é um direito de minoria – e a menor minoria é o cidadão. Ele deve ser a defesa do indivíduo contra o estado e contra os detentores do poder econômico. Ele não é um direito que serve para agradar a maioria, ou para justificar os anseios de justiça da população. Não é e nem deve ser.

A história moderna está cheia de exemplos em que a maioria oprimiu a minoria, e não podemos nos dar ao luxo de reaprender lições já sabidas. Por outro lado, sabe-se que a imprensa e o poder público podem errar, como de fato erram muito, exageradamente, sendo certo que alguns juristas dizem que ser réu no Brasil é só uma questão de tempo.

A segunda e importante observação é que, se são mesmo os recursos protelatórios que causam a sensação de injustiça, a saída óbvia seria reformar profundamente a legislação penal, e não dar interpretações ousadas na Carta Constitucional. O STF não pode substituir-se ao papel do legislador.

Bastava emprestar efeito suspensivo na contagem do prazo prescricional dos recursos interpostos em Brasília, para deixarem de ser um suposto mecanismo inibidor da entrega de justiça – o que não são, repita-se, haja vista a considerável taxa de sucesso deles. Afinal, como bem disse Alfredo Augusto Becker, as leis, a hermenêutica jurídica, os acórdãos, tudo no mundo jurídico é abstrato e artificial, salvo os efeitos: a dor e a perda da liberdade.

(*) Leonardo Avelino Duarte é advogado, professor e ex-presidente da OAB/MS.

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