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Capital

Em tratamento, eles tentam na fé a cura para a dependência química

Luciana Brazil | 13/10/2012 09:18
Em tratamento, eles tentam na fé a cura para a dependência química
Reunido antes do almoço, o grupo faz orações e entoa cânticos de louvor. (Fotos:Rodrigo Pazinato)
Reunido antes do almoço, o grupo faz orações e entoa cânticos de louvor. (Fotos:Rodrigo Pazinato)
Pastor abraça gêmeos e afirma que a melhor recompensa é ve-los se recuperando.
Pastor abraça gêmeos e afirma que a melhor recompensa é ve-los se recuperando.

“Fiz minha mãe sofrer e chorar muito. Nunca fiz minha mãe sorrir. Nunca dei orgulho pra ela. Hoje é diferente. Hoje, eu dou um beijo e um abraço na minha mãe, e isso é a glória”.

O jovem de 26 anos, que começou a fumar maconha aos 12 anos e aos 15 era usuário de pasta-base de cocaína, vive hoje um novo discurso. “Eu sou a prova viva de um milagre”, desabafa Fábio.

Sobreviventes de histórias sempre iguais, 126 homens recebem ajuda e tratamento em uma clínica para dependentes químicos em Campo Grande. “Se eu não estivesse aqui, eu estaria morto”, garantiu Fábio. Relatos como este demonstram a trajetória de desespero vivida durante anos. O que restou da destruição, eles reconstroem diariamente com oração, trabalho e determinação.

Acolhidos na Clínica da Alma, da igreja evangélica Tabernáculo da Glória, as chances de uma nova vida parecem se tornar cada vez mais reais. Lá, motivados pela fé, os homens demonstram o desejo sincero de mudança.

Depois de viver as piores consequências da dependência química, acreditam que a vitória chegou no encontro com Deus. “O que me traz paz é saber que eu sou livre diante de Deus. Prefiro morrer como um guerreiro de Deus, do que como um covarde do mundo”, diz Fábio.

“Creio na restituição da minha família, a mesma família que antes preferia dar comida para um cachorro do que dar para mim. Hoje não. A relação com minha mãe é diferente. E eu já roubei em lojas, em mercados, mas graças a Deus nunca fui preso”.

"Minha anseia por Deus.. Poderoso Deus.. Seja a honra, seja a glória, seja o poder", cantavam em oração.
"Minha anseia por Deus.. Poderoso Deus.. Seja a honra, seja a glória, seja o poder", cantavam em oração.
Fábio ajuda a cuidar dos porcos na chácara e diz que as pessoas deveriam ver a obra de Deus, ao invés da beleza do trabalho.
Fábio ajuda a cuidar dos porcos na chácara e diz que as pessoas deveriam ver a obra de Deus, ao invés da beleza do trabalho.

Assim como Fábio, os outros acolhidos na chácara, na saída de Três Lagoas, também revelam as mudanças que Deus trouxe em suas vidas. “A gente sabe o que mundo oferece. E um dia a gente vai voltar para o mundo, mas como novas pessoas. E que o mundo veja a gente com olhos diferentes", pediu em  uma prece o jovem de 20 anos, João Mike, que tem um irmão gêmeo também internado na chácara.

Aos 13 anos, os dois conheceram o vício. Os problemas familiares teriam desencadeado a armadilha. Mas depois de passarem pelo Cetremi (Centro de Triagem ao Migrante), os gêmeos chegaram à chácara.  “Ficamos seis meses dormindo na rua, sem tomar banhoi”.

Os dois relatam que apesar das dificuldades de viver a abstinência da droga e os “nãos” que agora enfrentam, o melhor lugar é a chácara. "Depois que a gente chegou aqui, os parentes já estão olhando pra gente de novo. Porque ninguém queria mais falar com a gente”, disse João Marcos.

O objetivo, segundo os gêmeos, é buscar as coisas de Deus. “O resto será acrescido”, completaram.

Emocionado ao ver tantos homens na fila para o almoço, o pastor Milton Cesar Montanheri Marques, 41 anos, um dos responsáveis pelo projeto, lembra que a sociedade está sofrendo os males das drogas e ressalta as histórias são sempre as mesmas. "Sãos sempre as mesmas dificuldades, as mesmas desconfianças, os mesmos abandonos, só muda o RG", destacou.

"O seu filho, o seu irmão, ou qualquer outro parente, pode não ter nada a ver com a droga, mas já está sofrendo com isso. Você pode dizer que não tem problema com a droga, mas vai sentir. É a mesma coisa no caso dos meninos que foram assassinados", disse, se referindo ao assassinado dos jovens Breno Luigi Silvestrini de Araújo, 18 anos, e Leonardo Batista Fernandes, de 19 anos. Os bandidos disseram que trocariam o veículo em que os dois estavam por cocaína, na fronteira com a Bolívia.

Há seis anos envolvido no trabalho de recuperação de dependentes químicos, o pastor critica a falta de recursos e fez questão de frisar que não recebe da prefeitura ou do Estado aporte para manter a chácara.

A ajuda vem das doações e dos valores que a igreja consegue arrecadar durante os cultos de  domingo. "Só no almoço foram consumidos 35kg de arroz. Tem dias que não tem muita comida, mas mesmo assim vou sempre receber todo eles. Não vou dizer não. Não tem como ver as famílias chorando e fechar as portas da igreja", salientou o pastor.

"Queríamos uma psicóloga, um psiquiatra, mas teria que ser um trabalho voluntário. Para criança ou idoso você consegue várias coisas, mas para eles é muito difícil. As pessoas olham e ainda vêem eles como bandidos.

Com quatro hectares, o aluguel da chácara é de R$ 750, mas segundo o pastor, o dono da área colocou à venda recentemente. "Agora eu não sei. Ele está pedindo R$ 130 mil, mas isso é impossível para gente. Estamos entregando nas mãos de Deus".

Tratado como um pai pelos internos e respeitado por todos, o pastor resalta ainda que é preciso cuidar da depressão e do vício como uma doença que precisa de tratamento. "Não dá para tratar a depressão como demônio, senão vamos ficar loucos. Sou totalemnte favorável à aplicação da medicina com a religião. Deus deu a inteligência ao homem para ele criar a dipirona".

Milton garante que a maioria tem passagem pela polícia, mas frisa que o desejo de mudar é unânime. "Aqui tem gente de Goiás, São Paulo, Amazonas, Paraná, e até do Paraguai".

Eles trabalham na construção da escola que será feita com troncos de árvore.
Eles trabalham na construção da escola que será feita com troncos de árvore.
Em oração, de braços abertos e olhos fechados.
Em oração, de braços abertos e olhos fechados.

Seis meses é o tempo mínimo de estadia na chácara, mas segundo Milton, para sair o prazo é ilimitado. "Não tem como dizer quanto tempo será necessário ficar, mas no mínimo são seis meses. Eles estão aqui por querem. O portão está aberto, se quiser ir embora pode ir", lembra.

Aos domingos o compromisso é no culto. Na igreja, que fica no centro da cidade, os familiares também participam. "O vínculo com a família é muito importante, até porque ela se torna vítima da situação", completou.

Além da oração diária e dos momentos de reflexão, os homens também são responsáveis pelas plantações e pelas obras feitas na chácara. "Tem mamão, abóbora, melão, banana, maracujá e pimenta. Tem também 200 galinhas, 50 patos, além dos porcos. As pimentas serão vendidas na cidade" acrescentou o pastor. Uma escola também está em construção e abrigará os que não têm estudo. 

Foi difícil não se emocionar ao ver homens que, antes tão fragilizados pelas drogas, agora cantavam de braço erguidos refrões de fé e devoção.  Antes do almoço, reunidos embaixo da árvore, a banda tocava versos traduzidos em oração. De braços abertos e olhos fechados a prece era visivelmente feita de coração.

"Vim para buscar Deus. O que eu não tinha lá fora encontrei aqui dentro", contou o paraguaio Hermes Javier, 30 anos.

"Meu sonho é chamar minha mãe para visitar minha família. Um dia quero casar, ter minha casa", disse um dos gêmeos.

"A gente não quer que vejam a 'boniteza' do trabalho, mas sim a obra de Deus. É preciso que as pessoas olhem com o olhar da fé o quanto esse trabalho é bonito", disse Fábio.

Com se quisesse ajudar, ele fez questão de dar um conselho para os que continuam no vício. "Se dê uma chance. Se ame, se dê valor. Olhe para a sua família e para as pessoas", disse Fábio.

Mesmo com as dificuldades, Milton garante que o trabalho tem que continuar. "O que me deixa feliz é saber que eles estão se recuperando, não tem nada melhor. O que a gente quer mostrar é que dá para sair desse mundo".

Fila para almoço emociona pastor, já que os recursos para mater a chácara são poucos.
Fila para almoço emociona pastor, já que os recursos para mater a chácara são poucos.
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