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Capital

Quatro anos de reuniões, morte de crianças e proteção integral segue no papel

Promessa de centro integrado existe desde 2019, mas falta de organização das atribuições deixa todos perdidos

Lucia Morel e Maristela Brunetto | 23/04/2023 09:15
Sala de espera na Delegacia de Atendimento à Criança. (Foto: Henrique Kawaminami)
Sala de espera na Delegacia de Atendimento à Criança. (Foto: Henrique Kawaminami)

No final de 2019, o MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul) começou a verificar em procedimento específico o funcionamento dos Conselhos Tutelares de Campo Grande e diversos órgãos e entidades passaram a se reunir para, principalmente, criar um fluxo adequado para a realização das escutas especiais de crianças e adolescentes, regulamentadas por lei em vigência desde o começo de 2018.

Desde então, vai e vem de debates e acusações permeiam o que é chamada de rede de proteção à infância. Delegacias, Poder Judiciário, MP, Conselho Tutelar, Polícia Militar, Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, em quatro anos, não entraram em consenso sobre as atribuições de cada um nessa cadeia, como garantir a chamada proteção integral exigida por lei.

A primeira reunião, em setembro de 2019, pedia que cada ente explicasse sua atuação na rede e desse sugestões quanto à aplicação da escuta especial e mostrava que faltava um local específico e adequado para receber as crianças e adolescentes para serem ouvidos nos casos de abuso e violência. Também já se falava da necessidade de um atendimento centralizado.

Nos encontros seguintes, através de ofícios, evidenciou-se um descontentamento do Judiciário e das Polícias, sejam elas Militar ou Civil, com o Conselho Tutelar. Tais entes elencaram, por exemplo, que os contatos de plantão não atendiam, se recusavam a atender crianças que ficavam sem os responsáveis na delegacia, ou mesmo que acionaram primeiramente o 190 em casos em que o primeiro atendimento poderia ser feito pelos conselheiros.

Propostas não efetivadas em uma das primeiras reuniões de 2019. (Foto: Reprodução)
Propostas não efetivadas em uma das primeiras reuniões de 2019. (Foto: Reprodução)

Inclusive foram anexados ao inquérito, que tramita na 46ª Promotoria de Justiça de Campo Grande, casos específicos que foram classificados como falha de atuação do Conselho Tutelar. Levadas à Comissão Permanente de Ética dos Conselhos Tutelares de Campo Grande, as situações foram consideradas regulares, sem entendimento de que houve falta funcional na atuação do conselheiro que atuou no caso.

No parecer da comissão, integrante que analisou os fatos, Nicolau Bacargi Júnior, pedia que a 46ª Promotoria desse orientações mais precisas aos conselheiros “quando do exercício da função, para que haja uniformidade de interpretação da norma, evitando contradição entre os conselheiros tutelares”.

Isso foi em agosto de 2021, mesmo período em que a juíza da infância de Campo Grande, Katy Braun, encaminhou ofício à promotoria evidenciando que as reclamações contra o Conselho Tutelar não tinham a intenção de penalizar os conselheiros.

Na comarca de Campo Grande os conselheiros atuam em rede com vários Promotores de Justiça, Defensores Públicos e Juízes, inclusive aqueles não especializados que atuam nos plantões, sendo que a diversidade de orientações verbais que recebem repercute na compreensão a respeito de suas atribuições”, ponderava em ofício.

Assim, a juíza citava que a intenção com as reuniões e denúncias era que a 46ª Promotoria, na pessoa do promotor Paulo Henrique Camargo Iunes, “emitisse recomendações ao referido órgão, (...) ou, ainda, em sendo cabível, celebrasse compromisso de ajustamento de conduta. A partir de então, os demais atores do sistema de garantia de direitos saberiam o que esperar dos conselhos tutelares, bem como deixariam de solicitar providências que não competem ao órgão”.

Por fim, o ofício pedia que o promotor oportunizasse aos conselheiros dizerem para quais atribuições solicitadas a eles há concordância ou não e que orientasse essa atuação, “melhor do que a adesão dos conselheiros a um ou outro entendimento, é que referido órgão não atue conforme o posicionamento pessoal de seus componentes, mas de maneira uniforme e de acordo com a legislação vigente”.

Quase um ano depois, em junho de 2022 e sem avanços específicos em relação à rede de proteção e atribuição de cada ente – e sem recomendações ou acordos que previssem essa organização – entrou em vigor a Lei Henry Borel, que passou a nortear os encontros do grupo. Nela, há a especificação da responsabilidade de cada ator da cadeia de proteção.

Tal lei passou a nortear as reuniões até novembro daquele ano, quando ocorreu o último encontro de 2022. Nele, se falou na criação de um centro integrado e se mantinha a tônica de estabelecer um fluxo adequado de atendimento à criança, o que até então seguia a passos lentos.

Morte de criança – No fim de janeiro de 2023, após violência sexual e agressões, uma criança de apenas 2 anos de idade, morreu. Questionou-se muito a rede de proteção e suas falhas, já que a menina passou por diversos atendimentos de saúde em que apresentou hematomas, houve denúncias à polícia e ao Conselho Tutelar e nem mesmo isso desencadeou reação no serviço de proteção a ponto de impedir a tragédia. O drama deixou expostas as falhas no sistema.

Em comoção, mas também com ânimos exaltados, a reunião de fevereiro deste ano começou com o promotor Paulo Iunes citando os “problemas atualmente existentes entre os vários segmentos da rede de proteção” e a necessidade de continuar a elaboração do fluxograma de atendimento.

Relato de conselheira tutelar em reunião do MP em fevereiro deste ano. (Foto: Reprodução)
Relato de conselheira tutelar em reunião do MP em fevereiro deste ano. (Foto: Reprodução)

Katy Braun comentou que acredita que as atribuições dos conselheiros tutelares é mais ampla que as que de fato realizam. “(...) segundo a lei, o Conselho Tutelar também atua como integrante da rede e não executa apenas medidas de proteção, portanto entende equivocado o entendimento atual dos conselheiros tutelares, que em muitos casos, os conselhos tutelares têm que atuar diretamente sim, o que falta no caso é treinamento dos integrantes da rede, portanto conselho tutelar atua diretamente sim, visita sim (realiza primeiros atendimentos) e atuação de um órgão não exclui o do outro, ou seja, a atuação da policia não exclui a atuação dos conselheiros, nem da equipe de saúde, etc”.

Conselheiros disseram que as condições de trabalho são precárias, com eles arcando com custos do próprio bolso para fazerem cursos, por exemplo, e que as reclamações se centram no Conselho Tutelar, sem que haja olhos para os demais entes. A última reunião ocorreu em março, com promessa de que o centro integrado já estava em fase final, mas que precisava do fluxograma e do regimento interno para sair do papel. Na verdade, ele ainda é uma ideia que foi discutida durante a semana. Até representantes de outros estados vieram para expor a atuação ideal.

Dessa reunião, surgiu a ideia de um serviço central de plantão para conselheiros tutelares, ideia que passa pela organização pela Prefeitura e um consenso entre os conselheiros e que, mais uma vez, ainda não avançou.

Sem comando - A falta de uma coordenação central para os conselhos tutelares contribui para a dificuldade de padronizar o atendimento. São pessoas escolhidas pelo voto direto, no ano seguinte às eleições nacionais, com mandato de quatro anos. Os conselheiros são como uma ponte entre a sociedade e os serviços públicos. Eles integram a chamada rede de proteção integral que deve atuar em favor das crianças e adolescentes.

Em Campo Grande, há 25 conselheiros distribuídos em cinco conselhos. São remunerados pela Prefeitura de Campo Grande, que também deve fornecer infraestrutura de atendimento, como veículo, técnicos, mas a administração municipal não tem o poder de disciplinar a forma como serão feitos os atendimentos, dispor uma escala de trabalho ou a forma sobre como proceder diante de cada tipo de situação que chega ao conhecimento da rede de atendimento.

A situação se torna mais complexa quando se constata que os conselheiros não passam por qualificação para ampliar o domínio das atribuições. Eles são submetidos a um curso e a uma prova, o que vai ocorrer este ano, porque haverá eleição em outubro. Os aprovados vão à votação popular e os eleitos têm acesso a uma preparação no início do mandato. Depois disso, segundo a reportagem apurou com conselheiros, não há mais formação.

O trabalho deles é realizado conforme o entendimento, sem hierarquia entre os conselheiros. Como na legislação não há padrão, os modelos são feitos a partir de interpretações.

É no dia a dia que vão aprendendo e, muitas vezes, quando chegam à melhor compreensão de toda a complexidade do trabalho que exercem, já é hora de deixar o mandato. Eles se organizam entre si e trocam experiências, fazem relatórios a cada trimestre relatando tudo que vivenciam. O documento é encaminhado à Promotoria, à juíza da Infância e pro CMDCA (Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente).

No auge do debate desencadeado no começo do ano, a juíza Katy Braun chegou a dizer que conselheiro não era despachante de luxo, uma menção de que não poderiam resumir o trabalho ao trânsito de papelada.

O grupo foi alvo de muita cobrança e segue sendo muito pressionado, mas também enfrenta dificuldades de logística e apoio para o trabalho. Nos últimos meses, a reportagem ouviu muitos relatos sobre a falta de estrutura e até mesmo segurança para estarem na comunidade.

Aperfeiçoar serviços – Uma conselheira admitiu que da forma como a rede é estruturada, há revitimização das crianças. Ela menciona a falta de estrutura para a escuta especializada. Por ser uma fala espontânea, a revelação da violência pode surgir diante de qualquer pessoa dos serviços de atendimento, da merendeira da escola ao médico do posto.

No município há uma equipe volante, que é designada quando surgem situações. As mais graves já entram na esfera policial e envolvem outro mecanismo, o depoimento especial, que é feito para obter o meio de prova para a ação penal. Tanto a escuta quanto o depoimento foram regulamentados em lei própria, a Nº 13.431/97, que destacou a prioridade absoluta na proteção e a necessidade de políticas integradas e coordenadas com a finalidade de proteger crianças e adolescentes de negligência, discriminação, exploração, violência, abuso, crueldade e opressão.

A Lei Henry Borel inclui o Conselho Tutelar como um dos serviços que podem solicitar medidas protetivas às autoridades, além de também ser apto a receber denúncias feitas pela comunidade. O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) também remete aos conselhos as denúncias de violência contra os menores, mencionando expressamente esse caminho para os profissionais de saúde que identificarem casos suspeitos de violência. Todas as legislações destacam a necessidade de capacitação permanente de quem atua na rede de atendimento.

Os conselheiros não são preparados para a chamada escuta especializada. No começo do ano, após a morte da criança de dois anos, vários agentes se apressaram em anunciar a qualificação de profissionais para ter o olhar preparado para identificar a violência e receber o relato da maneira menos traumática, entretanto, ela não ocorreu.

A reportagem apurou com o CMDCA que a Secretaria Municipal de Assistência Social estaria no processo de preparação de um curso, passados cerca de três meses do início das discussões.

Há dois anos, a Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente anunciou que conduziria os debates para a organização dos centros. No entanto, não houve avanços. Quem faz o que, distribuindo as tarefas dos conselheiros, dos profissionais da saúde, assistência social, educação e da polícia, ainda segue como um desafio.

Uma pessoa que atua na área reconheceu à reportagem que é como se cada um falasse consigo mesmo. O desafio é que isso seja superado e haja a integração de serviços, um agir interinstitucional, com compartilhamento de informações, para trazer de fato a proteção integral, como expresso nas leis.

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