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Comportamento

A vivência do estudante de Medicina em 4 semanas sem ter nem o SUS num hospital

Paula Maciulevicius | 10/07/2013 08:00
Aos 22 anos ele embarcou para levar ao Nepal reforço no atendimento médico e trouxe consigo a experiência de um povo que sobrevive à falta de tudo.
Aos 22 anos ele embarcou para levar ao Nepal reforço no atendimento médico e trouxe consigo a experiência de um povo que sobrevive à falta de tudo.

"Na verdade por quê não o Nepal?". É com outra pergunta que Paulo Zanin, de 22 anos, responde sobre a escolha de participar de um programa de voluntariado por quatro semanas em um hospital entre as regiões mais pobres da Ásia. "Apesar de não ser o melhor sistema de saúde do mundo, ainda assim o Brasil funciona e eu queria uma experiência internacional de trabalho voluntário. Eu queria outra realidade, diferente da minha". E encontrou. Descartando as opções onde cultura e língua apresentavam semelhança e do serviço médico voluntário mais 'popularizado' na África, para o estudante de Medicina, ser diferente, longe e contrário a tudo que ele já conhecia foi o impulso para a escolha pelo Nepal.

Entre a língua oficial, o Nepali, e outros 120 dialetos diferentes, Paulo chegou ao Nepal no primeiro dia de janeiro deste ano, com destino ao Vale de Kathmandu, região central do país. A primeira opção de trabalho era ensinar inglês às crianças que não têm a menor chance de ir para uma escola e vivem onde a economia gira em torno do turismo, quase nulo. "Você pode imaginar quão pobre é, um país que depende 90% do turismo, mas não é muito turístico", descreve. Foram três meses de preparação, entre a ideia tida durante uma noite de insônia e o dia da partida. Paulo pagou, mesmo sem ter a certeza exata de que daria certo, um programa que dispõe de serviços voluntários de uma semana até quatro anos.

"Eu desci do avião e era a mesma coisa de chegar no aeroporto de Ponta Porã, por exemplo, de tão pequeno e eu não sabia que tinha blecaute, eu não sabia nada. Cheguei em um dos momentos que tinha eletricidade, então não estava tão problemática assim", relembra. À primeira impressão da cidade não pode ser levada em conta ali. Durante a noite só dava para enxergar as luzes, que num paradoxo, escondiam as pobrezas que só a claridade do sol deixaria exposto no dia seguinte.

A pobreza nas ruas e o olhar dos nepaleses. A falta de estrutura para tudo ainda não tirava o brilho e profundeza dos olhos deles. (Foto: Paulo Zanin)
A pobreza nas ruas e o olhar dos nepaleses. A falta de estrutura para tudo ainda não tirava o brilho e profundeza dos olhos deles. (Foto: Paulo Zanin)
Paulo e os americanos na fachada do hospital em que levaram um atendimento mais humanizado em meio a tanto descaso.
Paulo e os americanos na fachada do hospital em que levaram um atendimento mais humanizado em meio a tanto descaso.

As surpresas começaram já na chegada, de ver pessoas passando fome no aeroporto, estar totalmente perdido, sem ninguém no aguardo, como era de se esperar. Pelo desespero que com certeza estava estampado no rosto do jovem, um guarda se aproximou e em inglês, ofereceu de graça o celular, para que ele pudessem pedir por ajuda. "Eu liguei para a pessoa e ela veio me encontrar. Quem me deu o celular não pediu nada em troca, eu até ofereci gorjeta e ela falou não. Disse você é novo e está perdido, então não há necessidade. Esses desbalanços, esses paradoxos, assim me deixavam meio chocados e perdidos de vez em quando. Será que eles querem dinheiro, o que eles querem, qual é a desse povo?"

Cansado, depois de voar horas a fio, ele chegou a um albergue, bem modesto, onde encontrou quem seria sua família pelas próximas quatro semanas. "Eram sete americanos que iam trabalhar comigo. Eu não estava mais sozinho. Como lá é tudo diferente, parte da minha preocupação já tinha se esvaído", argumenta.

O primeiro dia, ele mesmo confessa, que não houve um choque. No entanto, foi com o raiar do dia e a necessidade de ligar para casa e dar notícias que o 'baque' veio. A solução foi encontrada em um cyber, nada do que aqui a gente possa imaginar. O ponto se resume a uma casa de madeira, onde tinha só telefone e nada de internet em si. No trajeto até o local, a ficha foi caindo. "A gente passou por lugar que não tem asfalto, horrível, extremamente poluído, onde eles jogam lixo no meio da rua e que quando tem muito eles queimam. É assim, saneamento básico são palavras que não existem. Foi ali que eu falei: Meu Deus, o que está acontecendo aqui?" Neste momento o estudante optou por ser vegetariano, pelo menos durante as quatro semanas, porque as carnes eram vendidas ali, ao ar livre, sem nenhum cuidado sanitário.

Na família hospedeira, que recebeu parte do pacote pago pelo acadêmico para dar comida e um canto para dormir, a mãe, não falava inglês. Somente os filhos que passavam o dia todo na escola. No resumo da ópera, a conversação era totalmente através de gestos e sorrisos. Os anfitriões no Nepal são da casta mais alta, mas não significava necessariamente que tinham dinheiro. Eles apenas sofriam menos preconceito.

A precariedade da estrutura vista de dentro.
A precariedade da estrutura vista de dentro.
O 'jeitinho' dado pelos nepaleses para ter uma cadeira de rodas dentro do hospital.
O 'jeitinho' dado pelos nepaleses para ter uma cadeira de rodas dentro do hospital.

O trabalho voluntário foi dedicado no hospital. Até lá Paulo percebeu que a bagagem que trazia de metade do curso de Medicina seria ajuda de mais valor. Era mais fácil achar quem ensinasse o idioma universal, do que gente preparada para prestar serviços médicos. A língua não era entrave para a realização do trabalho, isso porque a literatura e a própria educação médica é feita toda em inglês. O que o jovem encontrava nas ruas refletia hospital adentro. "Em comparação com os recursos que a gente tem aqui, é miséria total. Não tinha raio-x direito e tinha que ter um motivo muito importante para pedir exame", conta.

A rotina começava às 7h30 da manhã com uma extensa fila de pacientes, uma média de 70 para serem atendidos ainda de manhã e outros 90 à tarde. Sem recursos e sabendo das limitações de medicamentos, "A gente atendia de graça porque era um hospital mais ou menos filantrópico. Mas não adiantava dar receita, por exemplo, porque o paciente não ia voltar, ele ia morrer no meio da rua. Não existe isso de volta daqui quanto tempo. Lá não existe a questão de certo ou errado. Isso só existe quando se tem a possibilidade de tê-la. Lá era decidir entre o necessário e o necessário".

As lágrimas inundaram de realidade o rosto do rapaz logo nos primeiros dias. Saudade, distância de casa e o principal: perceber que não se podia ajudar todo mundo. "Eu olhava criancinhas passando fome na rua, mas não dava para ajudar todas elas ao mesmo tempo e elas pedem o tempo todo. Elas te acompanham, andam com você por quilômetros", narra.

O frio era o requinte a mais que deixava o sofrimento do povo nepalês à vista. Na correria do hospital, ele mal sentia as baixas temperaturas. Mas durante à noite, passou frio mesmo usando saco de dormir e estando todo encapotado.

Das quatro semanas que Paulo viveu no Vale de Kathmandu, três delas foram dentro da unidade hospitalar. Mas a situação chegou no ápice quando ele viu que a questão não era só falta de dinheiro, ia muito também pela falta de humanidade. "Não tinha anestesia local, eles tiravam os pontos no seco. E existia o anestésico, mas nunca foi dada essa opção para o paciente, não era caro, era só oferecer 'você quer comprar'?".

O voluntariado serviu para reforçar, de vez, o que Paulo quer e pretende fazer. Se nem o Nepal o fez desistir, nas palavras dele mesmo "não desisto nunca mais".

"Desde o primeiro dia eu me apaixonei sem pestanejar. Me senti humanamente realizado, entretanto impotente. A gente é acostumado a ter recurso, a sempre dar certo. Lá a gente se acostuma que quando dá certo, tem que comemorar demais. Pelo que se vê lá, eu não voltaria por enquanto. Foi muita coisa, muita experiência, muito intenso em um mês. Mas você não precisa ir até lá para fazer alguma coisa. Um dia no asilo São João Bosco, você já muda. A gente precisa se obrigar a fazer alguma coisa. Lá eu não tinha certeza nenhuma do que podia acontecer, mas deu tudo certo".

O Lado B dividiu o relato de Paulo Zanin em duas histórias. Hoje terminou a saga do hospital, mas foi na última semana vivendo a realidade nepalesa que ele prestou o que viria a ser a maior entre as ajudas a um próximo que tem tão pouco. O segundo capítulo será publicado nesta quinta-feira.

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