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Comportamento

Quando é tão mais fácil culpar o pobre, Roberto julga réu sem pensar em agradar

Paula Maciulevicius | 17/08/2016 06:40
Juiz há 15 anos, Roberto é a voz dos Direitos Humanos dentro da Justiça. (Foto: Alcides Neto)
Juiz há 15 anos, Roberto é a voz dos Direitos Humanos dentro da Justiça. (Foto: Alcides Neto)

Roberto desistiu de ser político para virar juiz. Chegou a ser vice-prefeito da cidade onde nasceu, Paranavaí, no estado do Paraná, mas viu no Judiciário um poder, teoricamente, independente para defender o que sempre foram suas lutas: justiça social e diminuição da desigualdade. Aos 42 anos, católico e simpatizante da congregação franciscana, Roberto Ferreira Filho, juiz da 1ª Vara Criminal de Campo Grande, fala como é ir contra a corrente em uma esfera onde é mais fácil criminalizar a pobreza e julgar para agradar a maioria. 

Desde a adolescência, Roberto conta que era engajado no movimento estudantil e em atividades voltadas ao tema dos Direitos Humanos. Com 23 anos, presidiu um partido político e aos 27, foi eleito vice-prefeito. O primeiro ano da faculdade foi feito aqui, na UCDB, porque uma tia morava em Campo Grande, mas o término foi pela Universidade Estadual de Maringá, onde ele chegou a cursar disciplinas com o "aclamado" juiz Sérgio Moro.

De família de advogados, o tempo em que manteve escritório no Paraná, advogava de graça. "Como não havia defensoria pública estadual em Paranavaí, também atendia algumas pessoas mais carentes, participando de júris essas coisas. Minha principal bandeira de luta sempre foi a da justiça social e da diminuição da desigualdade social", diz. 

Depois que a vontade de seguir a carreira no Judiciário surgiu, ele optou por Mato Grosso do Sul para não ter vínculos com o que chama de "antigos colegas de lutas políticas". "Fiz o concurso só aqui e deu certo. Acabei passando tanto para a Magistratura, quanto para Procuradoria do Estado, mas por essa independência, através das suas decisões, de elaborar como modelo do Estado que a nossa instituição preconiza, acabei optando pela Magistratura", conta. A posse foi em agosto de 2001, há exatos 15 anos.

Papel do judiciário é, na avaliação do juiz, garantir os direitos fundamentais, independentemente se resultará em popularidade ou não. (Foto: Alcides Neto)
Papel do judiciário é, na avaliação do juiz, garantir os direitos fundamentais, independentemente se resultará em popularidade ou não. (Foto: Alcides Neto)

Das comarcas por onde passou, o juiz que até março deste ano foi presidente do Fonajuv (Fórum Nacional dos Juízes de Justiça Juvenil) e, de uma análise atual, Roberto explica o que vê chegando aos tribunais, muitas vezes até já condenado, a criminalização da pobreza.

Culpar o pobre - "Não é um fenômeno local, nem nacional. Isso é fruto, sem dúvida, do modelo econômico que prioriza o lucro, que, como diz Baumann, considera os incapazes de consumir como 'consumidores falhos', e, por isso, descartáveis. Esse modelo ajuda a que nós nos tornemos mais insensíveis e indiferentes com os que sofrem, com os que não possuem melhores condições de vida, e que, muitas vezes, enxerguemos o diferente como se ele 'fosse errado', como se o nosso modelo de vida fosse de segmento obrigatório", descreve. 

Com esse tipo de visão, o juiz acredita que, naturalmente os mais vulneráveis, as minorias, em geral, sofrem e acabam sendo marginalizados. "A criminalização da pobreza, mesmo no Mato Grosso do Sul, vem nesta corrente. Passamos a enxergar lutas populares como arruaças, usuários de drogas como criminosos ou incapazes, e, pior, enxergar a resposta penal, cada vez mais dura e até cruel, como o único remédio, por mais desigual e ineficaz que muitas vezes ele seja", pontua.

Resistir contra a criminalidade da pobreza é uma das bandeiras mais defendidas por magistrado. (Foto: Arquivo Pessoal)
Resistir contra a criminalidade da pobreza é uma das bandeiras mais defendidas por magistrado. (Foto: Arquivo Pessoal)

O papel do judiciário é, na avaliação do juiz, garantir os direitos fundamentais, independentemente se isso resultará em prestígio, popularidade, ou não. "É muito fácil, e aí talvez sequer precisássemos de juízes com as garantias constitucionais que temos, julgar agradando a maioria.... Difícil é reconhecer o direito de alguém sem força política, econômica e social. Por vezes já antecipadamente pré-julgado, aí o juiz deve ter coragem suficiente para garantir o direito desse ser humano", frisa. 

Ir contra a maré da criminalização da pobreza é, sobretudo, resistir. "Primeiro, resistindo em nossas diferentes funções, pois isso auxilia, passo a passo, na formação de opinião. Segundo, nos informando e nos preparando cada vez mais, para enfrentar o discurso frágil do senso comum. Terceiro, propondo, sugerindo, cobrando pela efetivação de políticas públicas que acabam mostrando outro caminho, além daquele proposto pelos populistas de sempre", responde.

Como exemplo, o juiz coloca o dependente de drogas, popularmente visto como um inimigo e que se não há locais apropriados e suficientes para tratá-los, que sejam criminalizados. "Ocorre que há e deve haver alternativas, que não a exclusão social e a marginalização. A questão, no exemplo, é de políticas públicas, de saúde, de emprego, de resgate de cidadania do dependente... Ou seja, há alternativas, e o caminho do senso comum é sempre o do 'pensamento simplista', ilusório e, por isso mesmo, totalmente ineficaz", aponta. 

E fazer essa resistência não é nada fácil. Na absolvição de um réu por falta de provas, por exemplo, a vítima foi reclamar na delegacia e ouviu do delegado que o "juiz não gosta de polícia", quando na verdade, Roberto sustentou a absolvição pelo ponto de vista técnico. "As pessoas não conseguem analisar a questão do ponto de vista técnico e querem que, necessariamente a sua crença e opinião, prevaleçam. A análise de prova é técnica e o seu compromisso é de diminuir a chance de erro cometido pelo Estado, ou seja, condenar um inocente. Eles pensam que a opinião deles deve valer e muitas vezes não é e as pessoas levam para o lado pessoal". 

Desigualdade em MS - No Estado, os exemplos de desigualdade social que mais lhe saltam aos olhos é, sem dúvida, para com a população indígena, seguidas das denúncias de trabalhos análogos ao de escravo e ainda, como reflexo da desigualdade, as insuficientes políticas públicas de atendimento aos dependentes de drogas, de atendimento aos adolescentes em conflito com a lei e tantos e tantos outros.

Quando a gente vê o papel de juiz como um julgador, é preciso perguntar o que se leva em conta nas decisões e como ter um olhar mais humano em cima das questões. "A lei, claro, é um norte, uma baliza, mas seu alcance depende de interpretação, sempre e sempre à luz da Constituição, de tratados internacionais de direitos humanos, e jamais julgar alguém, seja quem for, com ódio ou qualquer tipo de preconceito.

Claro que o juiz é um ser humano comum, com suas paixões, tendências, valores, ideologia. Todavia, não pode, jamais, no processo, ser um torcedor, um apoiador de a, b ou c. Deve ter autocrítica, deve, intimamente, se policiar, e, quando necessário, deixar de lado sua 'preferência' e seguir fielmente seu compromisso, sobretudo, com a constituição, inclusive para que, sempre, reconheça que quem será julgado tem ao menos um direito inafastável: o da dignidade humana", explica. 

Na opinião dele, não existe um modelo perfeito de Justiça a ser seguido e nem tampouco a crença em que as grandes transformações sociais, por exemplo, dependam do Direito e da atuação da Justiça.

"A Justiça - aqui como poder e não como valor -, ao meu sentir, deve ser garantia contra retrocessos (conquistas já obtidas e ações ou práticas que não querem mantê-las). Juiz não pode ser gestor, o mais adequado é que toda sociedade seja instruída e consciente de seus direitos em geral. Que não tolere, aceite, fique no prejuízo, fique na falta de uma proteção a interesse legítimo, por falta de conhecimento, por desconhecer que tem direito de livre acesso à justiça. Sem povo educado, educado para o exercício de cidadania, sobretudo, não há avanço possível. Quem move o poder, mesmo o judiciário, é o povo", ressalta.

Sistema penal - Sobre a prisão como penalidade, Roberto sai na frente mais uma vez e explica que além de não ser a única pena existente, deve ser encarada como a última alternativa e não a primeira. "Até porque é óbvio os malefícios que o encarceiramento podem produzir na vida de qualquer ser humano. Você adquire valores do próprio aprisionamento: a lei do mais forte, a violência como único referencial de poder e esperar que uma pessoa com essas motivações saia melhor do que entrou é acreditar em utopia", argumenta. 

Válida em casos graves e considerada pelo magistrado como "mal necessário", mas muitas vezes, uma uma medida alternativa bem dosada, é suficiente para a reprovação daquela conduta, sem causar os malefícios de um encarceramento. Roberto ainda pontua que a prisão como condição é um dinheiro mal empregado, que poderia ser usado em investimentos sociais, culturais, de prevenção e policiamento. "A pena de prisão não pode ser o coração do sistema penal", frisa.

E ela engloba sempre o pobre e negro, dentro de uma seletiva que surge a partir da escolha das penas feitas pelo legislador. "Um cidadão que vende um CD pirata pode receber pena de 2 a 4 anos de prisão, uma pena semelhante ao que se envolve em crime de corrupção. Assim, você acaba legislando e atingido a uma determinada faixa social da população, enquanto as classes A e B dificilmente se envolvem nestes crimes", exemplifica. 

E o que é ir contra a corrente? "Talvez seja representar um pensamento, hoje minoritário, acerca de diversos temas, especialmente temas referentes a direitos humanos, proteção de minorias, e, ainda, muitas vezes, pensamento político (aqui falo de ideologia, não de partido) que defende um modelo social diferente, que reduza desigualdades.

Enfim, é seguir aquilo no que se acredita, independentemente de aprovação ou aplausos da maioria, e sabendo que conquistas civilizatórias hoje já consolidadas foram, no passado, fruto de lutas de pessoas que, naqueles períodos, também nadavam contra a maré".

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