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Comportamento

Ruas têm histórias como do ex-confeiteiro e do músico italiano com 173 músicas

Paula Maciulevicius | 09/09/2014 06:41

As histórias que Campo Grande não quer enxergar. Personagens que vivem nas ruas, onde os melhores momentos são as recordações de um passado que não volta mais. Sem emprego, sem família, sem abraço, sem palavra, sem olhar. A vida deles se resume a uma série de "nãos". Em parte, reflexo de erros ou tramas que o destino traz à tona hoje. Quando enxergados, vistos, encarados, eles relatam a três jovens daqui como é flertar com a miséria humana.

Desde o dia 9 de junho, Campo Grande ganhou uma espécie de filial do projeto nascido em São Paulo. "CG Invisível" é uma página do Facebook criada por Rafael Carrilho, de 22 anos, a noiva dele Fernanda Witwytzky e o amigo João Vinícius de Abreu. Juntos eles recolhem depoimentos, contam histórias e retratam em fotos como é ser invisível.

O resultado é este, abaixo. Textos emocionantes de gente que se encontra no mesmo caminho, talvez sem volta, do vício no álcool, do abandono do convívio familiar. Dividido em séries, a primeira são moradores de rua, a segunda, catadores do lixão. Todos têm uma história para contar, basta alguém ter ouvidos e olhos para enxergar.

Morango. Personagem que estreou o CG Invisível. (Foto: CG Invisível)
Morango. Personagem que estreou o CG Invisível. (Foto: CG Invisível)

Meu nome é Morango, eu trabalhei 10 anos na feira. Entrei na bebida com 19 anos depois que meu pai e minha mãe morreram. Tentei voltar pra casa do meu irmão, mas minha cunhada não me quis lá. Fui pra casa da minha irmã, mas eu atrapalho lá, porque quero fumar meu cigarrinho e já entra tudo pra casa dela. Aí eu tô por aqui, quando chove eu durmo numa varanda.

Eu tô com um probleminha no estômago que dá vontade de ir no banheiro, mas aí não dá tempo de chegar lá. Aí não tem como, se eu for fazer alguma coisa aqui, eles vão chamar a policia e vão levar eu preso, aí eu tenho que fazer na rua. Essa calça aqui oh, faz 5 dias que eu tô com ela, ela ta suja, fedida, e não tem como eu levantar daqui pra ir no mercado, pra ir trabalhar, fazer qualquer coisa, porque onde eu passo as pessoas falam “oh o cagão, sai daqui”. Então eu prefiro ficar aqui o dia todo deitado mesmo. Várias pessoas me prometeram uma calça, uma bermuda, mas ninguém fez nada não. Eu queria voltar pro meu serviço, voltar a vender fruta e verdura, se Deus quiser eu saio dessa.

Meu conselho pras pessoas seria: que procurasse Deus. Não deixar qualquer problema bater na sua cabeça não. Todo mundo tem problema? Sim, todo mundo tem problema, mas tem que procurar uma solução, tomar uma atitude, fazer alguma coisa.

Inácio que oferece até a marmita. (Foto: CG Invisível)
Inácio que oferece até a marmita. (Foto: CG Invisível)

"Meu nome é Inácio, tenho 52 anos, eu não casei e nem tive filhos. Saí de casa com 11 anos de idade porque meus pais morreram, e aí eu perdi a força. Não sou ladrão, eu trabalho como pintor, quando aparece serviço, eu ganho meu dinheirinho. Esse negócio de malandragem existe comigo não. Trabalhe e seja honesto, porque a malandragem não adianta pra ninguém não, ela só leva a pessoa pra trás. Se você for honesto, você trabalha, você recebe, e fica tudo bem dentro do seu coração.

Tenho vergonha de chegar num lugar e pedir as coisas, essa é minha maior dificuldade. Mas acontece, eu tô com fome e às vezes eu preciso pedir. Mas com o dinheirinho que eu ganho como pintor às vezes eu compro comida, aí o pessoal vai lá quando eu tô dormindo e me rouba.

O que me falta pra sair dessa vida é um apoio, um amigo, uma pessoa que fale pra mim ‘vamo lá’. Mendigo não é bandido, as pessoas não se aproximam de nós, passam por aqui, e não é que elas não vêem, elas olham e já vira o olho pro outro lado, ignora, às vezes dão até risada, elas não sabem o que eu tô passando, não sabem da dificuldade. Quer um pouquinho da minha marmita?”

Evandro, ex-confeiteiro e que conversa de cabeça erguida. (Foto: CG Invisível)
Evandro, ex-confeiteiro e que conversa de cabeça erguida. (Foto: CG Invisível)

“Eu fui um dos melhores confeiteiros de Campo Grande, eu o Evandro. Eu tenho meio século, uma década e mais quatro anos e só dentro de padaria eu tenho cinquenta anos. Eu já fiz muito dinheiro, tinha dinheiro pra comprar um terreno em qualquer lugar que eu quisesse aqui. Mas eu descuidei, não vou mentir. Eu me envolvi muito com esse negócio de zona, bebia muita cachaça e não soube administrar o que eu ganhei. E hoje eu não tô tendo uma cama pra dormir, família eu tenho, mas casa eu não tenho.

Eu trabalhei em muito lugar aqui, mas eu me descuidei. Eu converso com você de cabeça erguida, minha vida desde os 14 anos é trabalhar. Toda minha vida eu dependi do meu suor, do meu caráter e da minha responsabilidade. Agora esse mês passado eu levei um choque e perdi um pouco do movimento desse braço aqui e assim, é difícil trabalhar desse jeito. Eu durmo na padaria às vezes, mas minha vida é trabalhar. O problema é que me pagam muito mal, não tenho dinheiro nem pra cortar um cabelo.

Eu falo sempre pra essa gurizada: O homem é igual um passarinho, pousa em mil galhos, mas só tem um ninho.”

Eunice e Deodado, o casal que vive de catar lixo. (Foto: CG Invisível)
Eunice e Deodado, o casal que vive de catar lixo. (Foto: CG Invisível)

“Meu nome é Eunice Ferreira, tenho 55 anos. Meu marido Deodado, é aposentado, tem 74 anos e faz 27 anos que a gente tá junto. Eu estudei até a oitava serie só. Eu trabalhava em casa de família, mas daí fiquei velha com uns problema de saúde e não consegui mais arrumar serviço em lugar nenhum, daí não podia largar a casa sozinha, tenho três filhas.

É difícil se sustentar só do lixo assim, ainda bem que meu marido é aposentado que daí ele ganha um salário mínimo, mas a gente tem que pagar aluguel, água, luz, e é difícil porque eu ganho pouco. Tem uns que dão valor pro nosso trabalho, mas tem uns que não gosta muito, fica olhando a gente assim.

Meu sonho é ter minha casa, poder olhar pra ela e falar ‘é minha’ , não ficar de mudança toda vez. As vezes encontro alguma coisa assim na rua e eu levo lá pra casa, mas fazer o que é errado nunca, é vergonhoso.

Já pensou uma pessoa ficar roubando? É tão feio. Quem quiser que conquiste, trabalhe. Mas tem que trabalhar digno. Eu cato minhas coisas, volto pro meu cantinho a noite, deito tranquila, sem preocupação. No outro dia eu posso comprar um pedaço de carne, um leite, né?”

Joarês Ferreira, motorista do caminhão de reciclagem. (Foto: CG Invisível)
Joarês Ferreira, motorista do caminhão de reciclagem. (Foto: CG Invisível)

“Eu sou o Joarês Ferreira, tenho 51 anos. Trinta anos de trabalho no lixão e como catador eu tenho dez anos, eu tinha um carrinho daqueles de empurrar daí eu catava nele. Consegui comprar minha casa, criar meus filhos, pagando agua e luz foi catando reciclagem na rua. Depois saí e fui catar no lixão, eu comecei como catador, mas agora eu sou o motorista do caminhão daqui da reciclagem.

As pessoas que tem dinheiro não gostam de mexer com o lixo, mas eu não tenho problema nenhum não, porque o dinheiro tá ali. Mas não é tão valorizado porque a gente não tem seguro de nada, se acontece alguma coisa eu tenho que desembolsar de mim mesmo. Mas agora tá bem organizado lá, eu tenho que bater ponto, mostrar minha carteirinha e tudo mais. Desde as quatro da manhã eu tô trabalhando e não tenho hora pra parar, mas normalmente paro umas oito da noite. Eu tenho uma mulher e um guri, tô tendo muito problema com ele porque sempre trabalhei o dia todo e não tenho tempo pra ficar com ele e ensinar as coisas direito."

Zappatta Malagutt, busca oportunidade na música. (Foto: CG Invisível)
Zappatta Malagutt, busca oportunidade na música. (Foto: CG Invisível)

“Meu nome é Zappatta Malagutt e tô no mundo aí procurando oportunidade de música. Sou músico e compositor, já fiz 173 musicas. Sou italiano, nascido na Sicília e faz vinte anos que vim para o Brasil. Vim a trabalho com meu pai, minha mãe pra trabalhar em lavoura de café e uva.

Um dia acabei me metendo em um assalto e fiquei preso 14 anos, oito meses, vinte dias e duas horas. Na cadeia eu fazia música. Fiquei preso e perdi minha esposa, fiquei distante da minha filha e pra não fazer besteira com ela também, eu preferi andar no mundo.

Um dia consegui um carrinho pra mim catar, daí o patrão gostou do meu serviço e hoje eu tomo conta de todo o depósito e eu durmo aqui. A noite eu pego o carrinho e vou catar no centro. As pessoas não valorizam a gente na rua catando, tem muita gente que acha que somos todos indignos, que vai roubar, sujar e muito pelo contrario, a gente recicla. Nosso serviço é tirar lixo da rua.

Tô vivendo uma vida digna, tranquila, com saudade da minha bambina. Mas o que eu gostaria mesmo é de levar a minha cultura, minha música em diante, comprar um violão pra mim. Escrevo muita musica brasileira. Um conselho pros jovens é que estudem, e sai fora de trapalhada, de droga, não faça o que eu fiz no passado, porque a gente se suja no passado e agrava no futuro. O futuro de droga é só a morte.”

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