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Capital

A mãe que celebra há 7 anos o dia em que Kelvin sobreviveu a um acidente

Paula Maciulevicius | 09/08/2012 10:07
Com as mãos, a mãe Neide acaricia o rosto e os cabelos do filho. Ele não pode fazer a mesma coisa, mas retribui com o olhar. No rosto dos dois um amor e uma cumplicidade que dispensa palavras. (Foto: Simão Nogueira)
Com as mãos, a mãe Neide acaricia o rosto e os cabelos do filho. Ele não pode fazer a mesma coisa, mas retribui com o olhar. No rosto dos dois um amor e uma cumplicidade que dispensa palavras. (Foto: Simão Nogueira)

"Nossa vida mudou e muito. Não vou dizer que sou feliz, porque quem é que é feliz vendo um filho acamado? Mas eu tento viver da melhor maneira. Não fico pensando porque ele fez isso, porque ele sumiu. Ele que vá prestar contas com Deus, minha parte eu fiz. Eu considero uma missão, foi uma fatalidade e eu não fico reclamando da vida não. Tudo isso aqui foi construído com doação". As palavras sinceras saem do coração de uma mãe que vive, pela força da fé, os últimos sete anos.

O que ela diz ter sido construído com doação é o quarto onde o filho está. O acidente que deixou Kelvin Henrique Maciel Domingues, hoje com 20 anos, em cima de uma cama, sem falar e andar, completou sete anos no dia 3 de maio. Data em que Antônia Aurineide Maciel, 46 anos, mais conhecida como Neide, comemora sempre quando o calendário chega com este dia, com fogos. "Solto fogos o dia inteiro, é um dia de felicidade, alegria, meu filho está aqui".

Naquele dia o menino saiu da escola onde estudava, no bairro Aero Rancho para procurar a mochila que haviam furtado dele. Na escola se dizia que quem havia pego era um outro aluno que estudava de manhã. Kelvin então pediu à coordenação para ir atrás, pegou a bicicleta e saiu. Duas quadras depois, foi atingido por um caminhão e aos 13 anos perdeu a adolescência que estava para chegar. O atropelamento mudou a vida da família toda. Não é só agora que o trânsito deixa sequelas.

"Eu quase morri. Porque o seu filho está na escola, de repente ligam dizendo que ele está entre a vida e a morte num hospital? Eu passei a morar na Santa Casa. Pela distância, não compensava vir para casa. Enquanto Kelvin estava no CTI, eu passava o dia lá para entrar nas visitas", recorda Neide.

Foram quase cinco meses de hospital. O menino sobreviveu ao acidente, à pneunomia e às duas paradas cardíacas que teve, fora as infecções. "No dia do acidente falaram para mim, mãe se você sabe rezar, comece a rezar agora. Ele foi desenganado várias vezes, eu tive que assinar papeis duas vezes, porque ele podia morrer durante as cirurgias, foi um momento de muito desespero".

Kelvin não fala, mas entende tudo ao redor. Dá um sorriso quando a equipe chega ao quarto e a mãe diz que ele gostou de nos ver. Perguntamos como ela consegue entender o que o filho passa.

"Eu tinha duas opções, me tornar uma pessoa amarga por aquilo que aconteceu ao meu filho, ou me tornar a pessoa que me tornei. É Deus", diz Neide Maciel, 46 anos.
"Eu tinha duas opções, me tornar uma pessoa amarga por aquilo que aconteceu ao meu filho, ou me tornar a pessoa que me tornei. É Deus", diz Neide Maciel, 46 anos.

"São sete anos já, ele é a minha vida". Os carinhos que eles trocam é de emocionar. A mãe diz o tempo todo como ama e como o filho é lindo. Com as mãos acaricia o rosto e os cabelos. Ele não pode fazer a mesma coisa, mas retribui com o olhar. No rosto dos dois um amor e uma cumplicidade que dispensa palavras, as de Kelvin e as da reportagem.

"Às vezes eu acho que ele recorda tudo, porque ele fica meio parado, aí chora, as lágrimas descem. É difícil, eu não gosto de ver ele assim. Então já trato de animar ele. Mostro que a gente ama ele, que ele não é um peso na nossa vida, não é um sacrifício, eu só gostaria de ter mais condições para não faltar nada pra ele. O que eu posso fazer, eu faço".

E faz mesmo, em volta tudo organizado e limpo, medicamentos em dia e a alimentação é conduzida por uma sonda. Mesmo sobrevivendo com apenas dois salários e doações ela não reclama de nada. Os medicamentos e parte da comida, Kelvin recebe da Secretária de Saúde do Município. Quando estão em falta, saem do orçamento apertado da família.

Kelvin está, como a medicina considera, em estado vegetativo. "Mas eu não gosto dessa palavra. Quem fica assim não tem expressão e meu filho sorri, ele te entende, ele pisca pra você. Pela medicina, ele nunca mais vai andar, comer pela boca, vai ficar assim pelo resto da vida. Mas para Deus nada é impossível, eu tenho muita fé e a esperança que ele levante e volte a andar", diz a mãe.

Dona Neide estava desempregada na época do acidente, mas havia prestado um concurso para auxiliar de campo na Embrapa. Foi chamada, mas a convocação veio para a antiga Neide, aquela mulher de antes do atropelamento. A nova, estava passando pelo pior drama que uma mãe pode viver, a de quase perder um filho.

"Se eu disser que sou feliz, estou mentindo. Sou humana. Ele vai pra escola e ... Por causa de um acidente? Porque quando nasce com alguma doença, você começa a aceitar desde cedo. Meus filhos nunca tinham sido internados, mal gripe tinham, tem dia que choro muito, mas não na frente dele".

Quando ela diz isso, o semblante do menino perde para a tristeza. Ele já não ri e os olhos ameaçam lacrimejar. Não foi só a equipe que percebeu isso, como o coração da mãe, que logo tratou de emendar "mas ele também se diverte das minhas histórias".

A vaga era para auxiliar de campo e o candidato precisaria andar à cavalo. "Ave Maria, aí eu reprovava em tudo. Não podia ser um jumento né não?". A frase sai engraçada pelo sotaque carregado de uma voz cearense. De repente, Kelvin gargalha e contagia todos à volta. Aquela risada dada com gosto, quando até se fecha os olhos.

Com fotos do menino ainda criança e recortes de jornais, ela mostra as contradições da vida causada por um acidente de trânsito. Em uma das mãos, sorrisos e brincadeiras e uma foto vestido de mamífero. Na outra, manchetes que noticiavam o atropelamento de um estudante. O motorista do caminhão tentou fugir do local, mas foi 'detido' por motociclistas que passavam por ali.

"Eu senti muito ódio, ele foi muito covarde, deixou meu filho agonizando e sumiu. Infelizmente, acidente de trânsito não dá em nada. Eu deixei na mão de Deus, ele veio e viu a situação. Ele devia ter consciência, ele também tem filho. Se eu tivesse feito isso com o filho dele, não ia esperar 1 ano e 3 meses para me manifestar. Poxa, ele deixou uma criança em cima de uma cama, meu filho tinha 13 anos", desabafa.

O motorista só foi se encontrar com a família que fez vítima durante uma audiência no ano seguinte ao atropelamento. Prometeu ajudar e assim o fez, mas apenas por três meses.

"Foi uma fatalidade, mas poderia ter sido evitada, ninguém sabe como que o motorista estava. Nem perícia foi feita no local, acabou que ele está aí dirigindo. Eu acho que o trânsito sempre foi violento, mas não era como agora. Tem muito irresponsável, que além de brincar com a vida deles, brincam com a vida dos outros, pessoas que bebem e quem mais sofre é a família. A lei tinha que ser pra todos", declara.

O acidente trouxe consequências que Neide, nem ninguém imaginaria que fosse protagonizar. "Eu não tinha dinheiro pra comprar pão pra minha filha, coisa que nunca tinha acontecido comigo, eu consigo porque tem gente que me ajuda. Toda doação é bem-vinda".

Os medicamentos, cirurgias e tudo o que o menino precisa é levantado por meio de rifas ou pela solidariedade. Nesta quinta-feira, Kelvin tinha no sofá da sala o último pacote de fraldas. "Os médicos quando olharam a primeira vez, disseram que não davam nem um mês. Nós superamos, já são sete anos. Tem dia que só falta eu ficar doida, mas sempre aparece um anjo para socorrer. E eu espero que venham mais sete, 10, 15, 20 anos e que Deus dê força para nós".

E é justamente essa a última pergunta que o Campo Grande News faz, de onde vem a força que essa mãe além de ter, consegue dar aos outros? "Eu fui muito mais sorridente. Eu tinha duas opções, me tornar uma pessoa amarga por aquilo que aconteceu ao meu filho, ou me tornar a pessoa que me tornei. É Deus".

"Ele pisca pra mim, sorri, eu conto piada, a gente reza junto. Isso é a minha vida, se existe outra reencarnação, eu falo Kelvinho, eu quero voltar como sua mãe".

Kelvin está a 17 dias de completar 21 anos. Faz aniversário no mesmo dia que Campo Grande. Dona Neide, a mãe, diz que sempre faz um "bolinho" e que por vezes foi surpreendida pela solidariedade quando lhe faltava dinheiro para comemorar. E há o que comemorar, isso ela garante.

O menino que agora é jovem usa fraldas GG, como a mãe mesmo já disse, qualquer doação é bem-vinda. Por estar na cama, é preciso sempre de mais lençois e também toalhas de banho. O contato da família é o 3380-6623.

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