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As lições da crise da dívida americana

Por José Carlos de Oliveira (*) | 14/08/2011 07:00

A transformação de uma questão econômica em uma disputa política e a radicalização dos conservadores republicanos, contrários a qualquer plano que resultasse em aumento de impostos, quase provocaram, na semana passada, o primeiro calote da história americana. Isto mergulharia, inequivocamente, a economia do mundo em uma situação caótica, de desdobramentos inimagináveis.

É bem verdade que o mercado financeiro internacional, mesmo após a aprovação, pelo Congresso Americano, da elevação do teto da dívida pública do Tio Sam, continua mergulhado em incertezas, reforçadas pela fragilidade do cenário econômico europeu, incluindo agora a Itália e Espanha. Mas é certo que o quadro seria seguramente bem mais preocupante se os Estados Unidos não pudessem honrar os pagamentos da sua exorbitante dívida pública federal.

Esta dívida alcança US$ 14,5 trilhões (cerca de 23,3 trilhões de reais), montante equivalente ao PIB dos EUA. O endividamento do setor público americano não se fez da noite para o dia, embora tenha se expandido, somente nos últimos cinco, em mais de 70%, como resultado dos crescentes déficits causados por elevadíssimos gastos com guerras, inadequadas despesas de proteção social, transferências de recursos a instituições financeiras insolventes em 2008 e, também, a perda de arrecadação decorrente da recessão econômica que perdura nesses últimos três anos.

A tônica do acordo entre Republicanos e Democratas se deu em torno do conceito de redução do déficit por meio anúncios de cortes em gastos militares e programas sociais, acompanhados por aumentos discretos de impostos. Esse arranjo, tido como uma derrota política do congresso americano e também do Governo Barack Obama, apenas protelará os problemas estruturais do desequilíbrio fiscal americano.

Este risco, de fato, não foi eliminado.

Por um lado, não foram adotadas medidas de contenção imediata de gastos, mas apenas foram protocolados compromissos de redução nos gastos do governo a partir do próximo ano. Por outro lado, tampouco houve qualquer medida concreta que resultasse em aumento de impostos, e, consequentemente, em incremento de receitas. Houve, na verdade, uma indicação de que se examinará, futuramente, uma forma de se taxar os mais ricos.

Essas medidas saneadoras até seriam pertinentes caso o único problema da economia americana fosse a redução de seu déficit. Mas a economia dos Estados Unidos anda a passos de tartaruga há pelo menos 4 anos, com contínua desvalorização do dólar. E, para piorar, a recessão não se limita aos EUA, sendo compartilhada por grande parte dos países industrializados do mundo. Assim, não é difícil perceber como o desequilíbrio fiscal americano gera mais preocupações do que se poderia pensar à primeira vista.

Na última sexta-feira (05/08), como se não bastasse toda a encrenca gerada pelo Congresso dos EUA, a Standard & Poor´s, uma das principais agências internacionais de classificação de risco, rebaixou, de forma inédita, a nota dos títulos emitidos pelo Tesouro da maior potencia econômica do mundo, de um grau AAA, que significa risco zero de calote para os detentores dos títulos, para AA+, que representa uma possibilidade, embora muito pequena, de que os títulos não sejam honrados.

O grande problema oriundo dessa decisão é simples de se entender. Os títulos americanos balizam decisões de investidores em todo o mundo. Quando o cenário financeiro é incerto, corre-se para os títulos do Tesouro dos EUA, pela sua tradição de segurança e liquidez. Mas o problema não se restringe a isso.

A China é, hoje, o maior credor do governo americano, ou seja, é o país que mais tem em sua carteira títulos de Tesouro dos Estados Unidos. Além da China, são também credores dos EUA, em ordem de importância, o Japão, a Rússia, a Arábia Saudita, a Coréia do Sul, a Índia e... o Brasil. Portanto, um risco de calote americano afeta a economia de todos esses países, inclusive a nossa.

A crise está longe de acabar, mas dela algumas lições já podem ser tiradas.

Primeiramente, conviver com déficits relativamente elevados e dívida pública bruta crescente, como tem ocorrido no Brasil desde a crise de 2008, sem o seu enfrentamento enfático, não é uma atitude recomendável. Manter déficit público nominal, hoje, implica aumentar a carga tributária no futuro, carga esta que já se encontra num patamar muito elevado (35% do PIB), sem a contrapartida na qualidade da prestação de serviços públicos e sem investimentos no nível requerido para o desenvolvimento do país. A manutenção do déficit pode também resultar em mais inflação, com todos seus efeitos nocivos sobretudo para os mais pobres e os que recebem rendas fixas, como salários.

O déficit público nominal se materializa em dívida pública crescente e elevadas taxas de juros, que, por sua vez, provocam excessiva apreciação cambial, como ocorre atualmente. Esses elementos geram custos financeiros desalinhados com as necessidades de investimentos privados requeridos pelo país para manter a economia em ritmo compatível com o seu potencial de crescimento. Em suma, o ajuste fiscal é mais do que urgente, a fim de evitar consequências indesejáveis.

A segunda lição que deve ser aprendida agora, é que o Brasil não é uma ilha imune aos problemas oriundos da economia globalizada. As vazias bravatas eleitorais que tanto foram ouvidas nos últimos anos devem ser deixadas de lado. As reservas internacionais líquidas estão na casa dos U$ 59 bilhões (as reservas cambiais brasileiras somam US$ 345 bilhões, ao passo que a dívida externa do Brasil é de US$ 286 bilhões), mas esse indicador não se traduz unicamente em benefícios, pela redução do risco do país.

Essas reservam trazem um custo fiscal de carregamento para o Tesouro Nacional de mais de 10% ao ano, agravando o déficit público, pois enquanto a aplicação financeira das reservas cambiais propicia um ganho não superior a 2% ao ano, os títulos públicos emitidos para adquirir essas reservas pagam juros SELIC, que estão em 12,5 % ao ano. Além disso, agora há um risco maior de mercado, decorrente do rebaixamento da nota dos títulos americanos, que compõem a parcela mais expressiva da carteira das nossas reservas.

É bom lembrar que, no início do atual Governo, foi manifestado o propósito de controle do déficit público, mediante uma redução, ao longo de 2011, de cerca de R$ 50 bilhões nas despesas, especialmente naquelas relacionadas ao chamado custeio da máquina pública, incluindo os gastos com pessoal.

No entanto, segundo o última divulgação do resultado do Tesouro Nacional, de janeiro a junho de 2011, o superávit primário alcançado foi resultado de uma maior arrecadação (aumento de 19,3% em relação ao mesmo período de 2010) e não de uma redução de despesas, que cresceram 10,5%, se comparadas às do primeiro semestre do ano anterior.

Para piorar, as despesas com pessoal cresceram ainda mais nesse mesmo período (11,4% em relação a 2010), ao passo que os gastos com investimentos, tão necessários para atender à demanda do setor transportes e da infraestrutura do país, aumentaram em apenas 0,3%, se comparados ao mesmo período do ano anterior, correspondendo a apenas 6,2% das despesas realizadas pelo Governo Federal no primeiro semestre do corrente ano.

Paralelamente, o Banco Central elevou, ao longo dos primeiros seis meses do corrente ano, a taxa básica da economia (a SELIC), de 10,75%, em janeiro, para 12,5%, em julho de 2011, para evitar uma maior aceleração inflacionária. Essas medidas ainda não foram bem sucedidas, uma vez que o IPCA de doze meses acumulado em junho de 2011 chegou a 6,7%, percentual bem superior ao centro da meta da inflação de 4,5% para 2011, e maior que o teto de 6,5% estabelecido para o corrente ano.

Com todas essas incertezas e preocupações, seria recomendável que a política fiscal brasileira retomasse a linha de maior comprometimento com a redução da dívida pública bruta, especialmente mediante a redução das despesas correntes, sem o uso de artifícios contábeis como os adotados no ano passado com as operações de antecipação de venda do petróleo do pré-sal e a capitalização da Petrobrás e BNDES.

O compromisso com o reequilíbrio das contas públicas seria a âncora mais segura para o crescimento auto-sustentado do país, pois permitiria um recuo na taxa real de juros, uma taxa cambial mais adequada, a manutenção dos programas de redução da pobreza fossem afetados, evitando que o Brasil reviva anos difíceis como os da década de 80 e inícios de 90 e não sofra mais fortemente a crise americana e européia.

Está mais do que na hora de o governo brasileiro ratificar seu compromisso com a estabilidade econômica e com o crescimento auto-sustentado do país.

(*) José Carlos de Oliveira é professor do Departamento de Economia, da Universidade de Brasília. Possui graduação em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais e mestrado (Master of Arts in Economics) na The George Washington University.

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