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Doutor, melhor usar tênis ou ficar descalço?

Por Fabio Ravaglia (*) | 24/03/2011 10:48

Dr. Usar ou não um calçado para correr é um tema que vem sendo discutido dentro e fora do Brasil. Sair com os pés no chão parece ser tão natural, que muita gente acha que não há nenhum problema em fazer isto. Muitos pacientes perguntam, doutor, é mesmo melhor para a saúde andar descalço? Antes que isto se torne modismo aqui no Brasil, gostaria de fazer algumas considerações sobre este tema polêmico.

Muita gente já viu corredores africanos disputarem a São Silveste, aqui em São Paulo, com o pé no chão. Eu mesmo, quando criança, vi vários, inclusive o Basilio, funcionário de uma olaria propriedade de uma empresa na qual meu pai trabalhava. Ele era um grande atleta: participou da São Silvestre muitos anos, disputou provas da Gazeta Esportiva e enfrentou o desafio de ir da cidade de São Paulo ao Rio de Janeiro com o pé no chão. Atletas em Olimpíadas modernas ou não mais correram descalços do que calçando tênis.

Mas, muita gente sofreu quando pisou em uma pedra, cortou o pé em caco de vidro ou arranhou a pele, não é mesmo? Pés calçados ou descalços pisam diferentemente o solo. Com tênis, os pés tocam o chão primeiro com o calcanhar e depois rolam até a ponta dos dedos. Quando se está descalço, a primeira parte do pé a chegar no chão é a ponta, fazendo o movimento inverso, aterrizando primeiro a ponta do pé e colocando o calcanhar por último. O movimento de rolar o pé fica invertido. Com isso, musculaturas diferentes são acionadas em cada caso: descalço, a da parte da frente da perna é a mais requisitada.

Já o pisar com o calcanhar movimenta a musculatura posterior da perna mais intensamente do que a frontal. Quanto ao impacto sobre as articulações, a pisada sem sapato parece contar com o amortecimento natural dos movimentos dos pés. As pessoas não pensam para fazer o movimento de uma maneira ou de outra. A biomecânica é intuitiva.

Originalmente, o pé humano se desenvolveu para andar descalço. Mas é claro que há séculos, por segurança e higiene, este hábito foi abandonado. Ocorre que a maneira de pisar e o tipo de calçado que usamos influenciam tanto no funcionamento quanto no formato de nossos pés. Muita gente sente dor na sola do pé ou dor no calcanhar — resultado do uso constante de um calçado inadequado ou da maneira de pisar incorreta. Ao entrar em contato com o solo, os pés agem no controle de postura, equilíbrio, apoio, impulsão, absorção de impactos e distribuição do peso corpóreo.

O pé é uma máquina perfeita de sustentação do corpo, fundamental para promover a mobilidade das pessoas, e o calçado pode afetar, positiva ou negativamente, a saúde e a performance de cada um. A anatomia do pé tem uma estrutura complicada – envolve um conjunto de ossos, juntas, articulações, ligamentos, músculos e tendões –, que permite uma enorme série de movimentos. Além da anatomia, que é a mesma para todos, cada um tem diferenças de formação. Há pessoas com pés normais, supinados (cavos) ou pronados (chatos). Na evolução da biologia humana os pés sempre estiveram descalços, mas temos de considerar que a saúde dos pés deve estar sempre em primeiro lugar antes de se decidir por tirar o calçado.

Mil modelos de calçados à disposição

O sapato pode mesmo prejudicar a saúde dos pés. O uso contínuo de um calçado inadequado pode gerar bolhas, calos, esporão calcâneo e até uma fascite plantar, ou seja, uma inflamação na sola do pé. Por isso, é importante fazer a escolha correta e o mercado dispõe de modelos de sapatos, principalmente de tênis, que são apropriados para cada caso. Tênis ou sapatos não têm a função de corrigir problemas ortopédicos, mas podem adaptar o pé para que o passo fique correto, ou seja, para amenizar as falhas da pisada.

Há uma infinidade de modelos nas lojas para atender muitos pés diferentes. A indústria de calçado mudou o design e até criou tênis inspirados na corrida descalço, que deixam no passado amortecedores e acolchoados. Os novos modelos de tênis são bem mais flexíveis e quase que sem salto. Uma geração mais recente já vem com solado absolutamente flexível, que deixa os pés bem livres para os movimentos naturais.

Além disso, para aqueles que gostam da sensação de andar descalço, a indústria criou um sapato que dá a impressão de que se está usando apenas meias. Como uma luva, as sapatilhas protegem os pés de ferimentos, do frio, da água, da lama, e permitem livremente a execução de variados movimentos naturais dos pés. São de tecido, com os dedos separados e uma camada de silicone, na parte da sola. Dão a sensação de se estar descalço e oferecem alguma proteção para evitar que a pele dos pés se machuque com objetos soltos no solo ou se contamine. Sem nenhum amortecimento, as sapatilhas permitem tracionar os pés da maneira que o ser humano faz quando está descalço.

Vantagens e desvantagens do pé no chão

Uma questão que cabe abordar em defesa dos pés no chão, vem da reflexologia, que diz que o contato direto com o solo é bom, primeiro pelo relaxamento e bem-estar físico que provoca e depois porque as diferentes superfícies de solos (areia, pedrinhas, terra, folhas secas, cascalhos, grama, lama etc.) estimulam as milhares de terminações nervosas existentes na planta dos pés.

O andar descalço funcionaria como uma terapia, um recurso da medicina alternativa para estimular naturalmente estes pontos que, segundo os praticantes, são interligados à coluna vertebral, à cabeça, a membros superiores e a diversos órgãos internos. Os fisioterapeutas que utilizam a reflexologia, no geral, fazem massagens nos pés, estimulando justamente os pontos que consideram mais importantes para a saúde do paciente. Lembro que para caminhar descalço sem correr riscos é bom escolher terrenos planos e evitar locais públicos que possam ter o piso mais contaminado por microorganismos.

Gostaria de citar a questão do movimento repetitivo, que é o grande causador de lesões, principalmente nas articulações. Muitos atletas sofrem com os movimentos repetitivos e não pelo motivo de usar um ou outro tênis.

Polêmica

O assunto usar tênis ou ficar descalço é mesmo controverso. De um lado, há quem defenda o uso de tênis para correr. De outro lado, em oposição, aparecem os preferem permanecer descalços ou usar sapatilhas (leves apenas para proteger os pés). Ao centro, estão os que acreditam na importância do contato do pé com o chão. Na minha opinião, a continuidade de estudos com metodologias científicas consistentes poderá solucionar a polêmica. Mas precisamos dar atenção somente a estudos que partam de amostragens mais amplas de grupos e escolhidas com justificativas científicas para cada fenótipo (conjunto de características físicas) selecionado, incluindo variantes como faixa etária, tempo de prática esportiva, ocorrências de lesões etc.

A análise de dados colhidos em campo durante um bom período de tempo precisariam juntar informações suficientes para chegar a conclusões mais consistentes em relação ao que é melhor para a saúde, o que causa menos impacto e o que evita traumas. A discussão que fica entre usar ou não tênis precisaria ser avaliada principalmente sobre o ângulo da funcionalidade do pé e também de uma forma mais abrangente e de longa duração para se obter resultados mais conclusivos. Um bom estudo comparativo seria muito útil para dirimir dúvidas.

Por hora, o melhor é tomar cuidado e não aderir indiscriminadamente a modismos. O que fazer quando os pés estão acostumados ao uso de tênis acolchoados que induzem a pisada com o calcanhar? A geração atual, que desde criança brincou usando sapatos, teria como voltar a caminhar como nossos ancestrais, que por mais de 4 milhões de anos andaram descalços? A biologia diz que a evolução natural do ser humano criou uma máquina perfeita.

A tecnologia em calçados diz que a evolução do tênis visa a melhoria do conforto e do desempenho do atleta. Mas os caminhos parecem estar desencontrados. É neste momento que precisamos usar o bom senso. Andar descalço no chão gelado pode provocar um resfriado, dizia a minha avó. Talvez seja melhor começarmos a pensar em como fazer as adaptações para um caso ou para outro, não é mesmo?

O fato é que não acredito que a maioria vá deixar de usar calçados de um dia para o outro. É uma cultura arraigada há séculos. Pensando nisto, minha orientação para a maioria é escolher o calçado correto, principalmente para atividade esportiva. O calçado deve sempre ser bem confortável e respeitar o biotipo de cada um. Pense no que é melhor para o seu pé e aproveite a série de inovações que foram implantadas em tênis, como amortecedor, acolchoamento, apoio para arco, materiais diversos para absorção de impacto na região do calcâneo e uma espécie de mola nos saltos. O tênis para corrida precisa ter mais amortecedores porque correr é uma atividade física que provoca mais impacto sobre as articulações do que caminhar.

Dicas para escolher o tênis

• Escolha o tênis mais adequado para a prática da atividade esportiva.

• Use um modelo que seja adequado ao formato de seu pé e de sua pisada. Se preciso, faça o exame de baropodometria para verificar com precisão como é a pisada e adotar o calçado correto.

• Se praticar caminhada ou corrida todos os dias, convém alternar o par de tênis de um dia para o outro.

Para andar descalço

• Escolha solos que não ofereçam riscos, de preferência não em locais públicos onde existe a possibilidade de haver algo cortante no chão, por exemplo.

• Evite fazer isto nos dias mais frios.

Recomendações gerais

• Antes de iniciar a prática de exercícios físicos, procure um médico para avaliar se você pode praticar a atividade ou saber qual é a atividade mais indicada para você.

• Antes de iniciar qualquer exercício físico, faça um aquecimento, alongando bem a musculatura. Ao final da atividade física é sempre bom fazer um relaxamento, também com alongamento.

• Não se exceda na prática de atividades físicas para não sofrer com lesões.

(*) Fabio Ravaglia é médico ortopedista, presidente, desde 2005, do Instituto Ortopedia & Saúde (IOS) – organização não governamental, membro do corpo clínico externo dos hospitais Albert Einstein, Oswaldo Cruz, Sírio Libanês e Santa Catarina e membro emérito da Academia de Medicina de São Paulo.

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