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Comportamento

Após 26 anos usando drogas, João despertou em fevereiro e diz que não é exceção

Naiane Mesquita | 11/12/2016 09:20
João deixou o uso de drogas há cinco e se tornou escritor (Foto: Naiane Mesquita)
João deixou o uso de drogas há cinco e se tornou escritor (Foto: Naiane Mesquita)

Das lembranças da infância, as que envolvem bicicleta são as favoritas. Estão esmiuçadas no livro “Memórias do Menino que Pedalava” com a frequência que o título sugere. Para nenhum canto. Todas foram abertas a familiares, amigos e quem mais quisesse perguntar. Uma das decisões de João quando finalmente conseguiu interromper o uso contínuo de drogas há cinco anos.

Hoje, ele percorre o mundo com pequenos enfeites de Natal no formato de presente e uma carta de felicitações, que espalha como uma corrente do bem.

Na cartinha quase infantil ele explica: "Queria mostrar, Papai Noel, pra uma, uma criança, o rumo que aprendi em casa, com meus pais, com meus irmãos e com meus próprios erros" e deixa um estímulo a quem não acredita na reabilitação: "Há pessoas maldosas, Papai Noel, que dizem que somos minoria. É mentira, não acredite".

Também mantém um blog em que escreve para quem vive o mesmo dilema e tem dois livros publicados, um de memórias e outro com artigos que publicou na imprensa.

O rompante literário é novo. Foi nas palavras que João se segurou quando tudo começou a mudar. O estilo de vida que ele mantinha desde a adolescência foi deixado para trás e o que sobrou foram descobertas. “Quando eu melhorei, parei de uma hora para a outra tudo que eu fazia, de negativo de aditivos que eu usava. Parei de uma hora para a outra, no limite, quando perdi tudo, inclusive a dignidade”, descreve.

Deitado na cama em mais um dos dias de excesso, João viu no choro da mãe a esperança de um futuro diferente. “Ela entrou no quarto, o dia estava nascendo. Ela sentou e chorou comigo. Perguntou se iria enlouquecer e morrer todo mundo na mesma loucura e que isso iria acabar naquele dia”, relembra.

Naquele dia, em pleno fevereiro de 2011, ele decidiu parar. Não sabe o motivo, desconfia de fé, ou melhor, que foi “tocado de alguma forma por algo divino”. “Eu fumava quatro cartelas de cigarro por dia, cheirava pó, usava base, crack, depois desse dia não senti vontade de mais nada. Procurei o centro espírita aonde eu desenvolvi minha mediunidade e adquiri a coleção do Kardec e estudei novamente. Comecei a assimilar melhor as ferramentas”, acredita.

Essa não era a primeira vez que João decidia parar. “O que eu percebi é que de fevereiro a setembro, apesar de em outras ocasiões eu ter parado, ficado abstêmio eu sabia que voltaria e dessa vez não. Foi quando comecei a escrever, uma produção assustadora, eu chamo de impulsos escrevedores”, diz.

Assim como as primeiras pedaladas da vida, João também descobriu as drogas na rua 7 de setembro, onde morava. Na região, embaixo de mangueiras, crianças ricas e pobres descobriam o algo em comum ao fumar maconha. “Era uma criançada da vizinhança que brincava de bicicleta e ali tinha o uso da maconha. Na época eu tinha 11 anos e eles não deixavam usar”, conta.

Foi aos 14 que tudo começou . Primeiro a maconha, depois a cocaína e o crack. “Até os anos 80 e 90, a única coisa que eu não fiz foi injetar cocaína, perdi muitos amigos com o surgimento do HIV, eu me preservei disso porque não tinha simpatia por aquela invasão. Das drogas clássicas até os anos 90. Depois começou a surgir as drogas sintéticas, nessa onda eu não entrei, foi muito ruim, costumam falar que a maconha é natural, a cocaína também é natural, o ácido sulfúrico também é natural”, explica.

Para João, o pior foi o uso na adolescência, quando a criança ainda está em formação. O efeito da maconha era devastador em uma criança em formação, eu considero 14 anos uma criança em formação e esse efeito de bloquear o desenvolvimento em certos aspectos da psiqué dependendo do aspecto que bloquear. As pessoas não amadurecem”, acredita.

Das vezes que permaneceu até quatro dias cheirando em casa e copiando livros antigos como forma de viver, sem se alimentar direito, João deixou para trás. Hoje, adora um sorvete em dias quentes e faz questão de andar a pé, sempre com um fone de ouvido.

Diagnosticado com transtorno bipolar recentemente, para João não existem drogas perigosas e sim personalidades perigosas. “Eu me batizei de experimentador de estados alterados de consciência, pessoas assim são invariavelmente compulsivas, que é onde pode surgir a overdose. Compulsivo está sempre em busca da primeira sensação quando usou a droga, que fica cada vez mais distante de alcançar”, comenta.

Essa compreensão do problema é recorrente dos anos de terapia que João acumula. Filho de um dos psiquiatras e professor renomado de Campo Grande, o escritor sabe que esses exageros foram difíceis para a família, que ele nunca considerou ausente. “Meu pai viajava, mas sempre foi presente. Já fui levado pela polícia ao consultório dele depois de uma dessas noitadas porque fui encontrado dormindo, desacordado. Eu imagino que para o meu pai deve ter sido triste, constrangedor, porque ele não tinha como controlar as minhas escolhas”, lamenta.

Mesmo com essa caminhada que demorou até ter uma reviravolta, João não cansa de manter o otimismo frente a tudo que conquistou. Das seis universidades que tentou fazer, arquitetura, jornalismo, artes visuais, administração, ciências contábeis e direito, foi Gestão em Logística que ele concluiu, aos 46 anos.

“Eu era uma criatura desacreditada dentro de casa, consegui me redimir da minha história. Eu tinha muito medo de ser refém, chegar um fofoqueiro e contar uma mentira. Meu impulso quando eu comecei a relatar sobre a questão foi para mostrar que eu tinha conseguido. Um olhar real sobre o problema da droga. Falo para as pessoas que querem melhorar, mas que acham que não dá”, frisa.

Dos dias sem drogas só existem boas recordações. “Foi uma grande libertação”.

Quem quiser comprar e ler o livro de João pode acessar o link pela Amazon. 

Cartinha com presente, uma simbologia que diz muito a João.
Cartinha com presente, uma simbologia que diz muito a João.
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