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Comportamento

Corintiano de sangue cearense e nome curto é figura na venda do Guanandi

Paula Maciulevicius | 22/08/2014 07:00
Testemunha do crescimento do bairro Guanandi, seu Hermes é figura na região. (Foto: Marcelo Victor)
Testemunha do crescimento do bairro Guanandi, seu Hermes é figura na região. (Foto: Marcelo Victor)

"Hermes da Silva. Corintiano, eleitor do Lula, sangue de cearense e nome curto". É assim que um dos moradores mais antigos e também mais "figuras" do bairro Guanandi, em Campo Grande, se apresenta ao Lado B. Os cabelos brancos e as pernas que já se mostram cansadas, não querendo ao certo obedecer o ritmo da fala do comerciante, viram e fizeram crescer a região nos últimos 45 anos.

Foi em 1969 que Hermes, hoje com 66 anos, comprou um terreno junto do irmão, na rua Barra Mansa. A ideia era de já ocupar uma área que viesse a crescer. "A gente procurava um lugar que fosse ter mais presença de crescimento rápido", explica. Claro que há quatro décadas, ali como tantos outros lugares não tinha nada. "Vixe, aqui era um matagal, só tinha um ônibus velho que vinha para cá, chamava Santa Rosa. Como a gente se virava? Uai, de bicicreta". O vocabulário demonstra um linguajar simplório de um senhor que não troca amigo nem por dinheiro. "Conquistar uma amizade para mim é melhor que um salário mínimo", compara. 

Conversador, daqueles que se a prosa engatar, se passa horas na troca das palavras e risadas, na década de 70, pouco tempo depois de ter se mudado, ele resolveu abrir um bar. "A lanchonete Tribuna dos Amigos. Por que? Ora, porque eu sempre gostei de amigos, de gente".

De pai para filha, Márcia hoje é comerciante no bairro onde nasceu e cresceu. (Foto: Marcelo Victor)
De pai para filha, Márcia hoje é comerciante no bairro onde nasceu e cresceu. (Foto: Marcelo Victor)

Pelo bar, pela personalidade extrovertida e a necessidade de estar no meio de gente, ele tinha entre os fregueses pessoas de tudo quanto era lado da cidade. "Tinha música, sinuca, a gente amanhecia brincando".

Como um dos primeiros moradores, coube ao seu Hermes também a função de fundar o bairro e posteriormente, quando o título passou a ser reconhecido, o cargo de "presidente do bairro". Da primeira até a última rua, não tem história, personagem ou fato que passou desapercebido pelos olhos do comerciante.

"A feira começou aqui, na porta de casa, com quatro barracas. Eles guardavam aqui no bar, eu deixava usar banheiro, se chovia eu emparelhava as poças até anoitecer", lembra. O posto de saúde, hoje grande na Manoel da Costa Lima, abriu pequeno, só com uma sala e duas entradas.

Na época das favelas, os moradores criaram um mutirão para por água e energia às casas improvisadas. "A gente abria a valeta e a prefeitura passava a máquina, dois vizinhos iam colocando os cavaletes, os outros puxando", conta. "Mas isso foi época do Canale, do Lúdio, do Wilson. Depois foi mudando muito", pontua.

Seu Hermes também lembra do Festival de Canções no bairro que foi até a quarta edição, do casamento caipira, onde colocou de noiva uma mulher com histórico de fazer até o padre fugir da igreja. "Ela tinha sido casada sete vezes, matou cinco maridos, dois fugiram..." e dá risada.

Até um dos episódios de maior repercussão na cidade, seu Hermes teve participação. Hoje são poucos os que se lembram do menino de 11 anos acorrentado à uma cadeira pela mãe, que foi solto pela Polícia em 1972. "Veio polícia, juntou vizinhança e tudo e olha que naquela época nem tinha muita gente aqui. Eu ajudei a arrombar aquele cadeado. O menino era meio danado, a mãe estava no serviço ainda e quando a gente entrou, ele estava sentado com os pés amarrados", narra.

Até mapa improvisado das ruas ele tem em madeira pregado na mercearia. (Foto: Marcelo Victor)
Até mapa improvisado das ruas ele tem em madeira pregado na mercearia. (Foto: Marcelo Victor)

O passado foi ficando lá atrás, as páginas da vida de seu Hermes foram correndo até que os capítulos seguintes do bairro e da venda fossem passados à filha. Nos últimos 9 anos, a "Tribuna dos Amigos" virou "Márcia Mercearia e Conveniência", mas não menos peculiar do que a gente imagina que tenha sido o boteco de antes.

Com toldo verde, de longe se vê a mistura de tudo o que se possa imaginar. Na calçada, chinelos, rasteirinhas, ferro de passar, sapateira e revistas dão às boas vindas. Lá dentro, o velho balcão com a porta feita de box de banheiro guarda doces de suspiro e paçoquinhas. Em cima salgados e no balcão ao lado, canudo, guardanapo, cuecas e calculadora tomam conta do cenário.

Márcia, a filha, diz ter herdado do pai essa vontade de mexer com gente. Talvez seja essa a explicação para um comércio tão variado. Até papel de presente de Natal tem, só que no teto. "O que eu não tenho? Ah, coisa de padaria. Ah não, isso eu também tenho. Tenho meus bolos. É, não vou ter aqui é açougue, mas olha que os clientes pedem, querem linguiça no domingo", brinca Márcia dos Santos Silva, de 40 anos.

A mercearia abre todos os dias e se as portas não estão abertas com tanta quinquilharia à frente, o povo trata de passar a mão no telefone. "Eles me ligam para saber se está tudo bem, porque eu não abri", afirma.

Até hoje a mercearia ainda é conhecida como sendo do seu Hermes. Ele continua ali, morando nos fundos do comércio e ajudando a filha no espetinho ao lado. Além da venda, eles lidam com comida durante à noite. Pai e filha, volta e meia, ainda criam alguma coisa. Para este ano, Márcia aproveita e pede doações de ingredientes para um bolo de 6 quilos que pretende fazer no Dia das Crianças.

Um dos pilares tem uma tábua de madeira que chama atenção. São os nomes de todas as ruas do Guanandi, do córrego até o CAIC, paralelas e transversais e ainda seguindo sentido centro ou bairro. "Eu que fiz esse mapa, aqui sempre me perguntam, primeiro o meu nome e depois das ruas. Acho que é porque vem aqui indicado de alguém", justifica.

Quando questionado se nunca quis se mudar dali, seu Hermes é incisivo: "mudar para quê? Aqui tem posto de saúde, supermercado, farmácia, escola, tem de tudo". De tudo assim como a venda da família.

Nos últimos 9 anos, bar "Tribuna dos Amigos" virou mercearia da filha. (Foto: Marcelo Victor)
Nos últimos 9 anos, bar "Tribuna dos Amigos" virou mercearia da filha. (Foto: Marcelo Victor)
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