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Capital

Mapa da trajetória de 400 jovens no tráfico mostra da infância à morte precoce

Delegada criou cadastro de meninos e meninas desde o primeiro crime até a vida adulta

Por Inara Silva | 01/12/2025 15:45
Mapa da trajetória de 400 jovens no tráfico mostra da infância à morte precoce

Há quatro anos, a delegada Daniela Kades, da DEAIJ (Especializada de Atendimento à Infância e Juventude), começou a acompanhar por conta própria a vida dos adolescentes envolvidos em tráfico de drogas em Campo Grande. Hoje, a lista reúne quase 400 nomes, com fotos que seguem os jovens da entrada na criminalidade até a idade adulta.

RESUMO

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O envolvimento de adolescentes com o tráfico de drogas em Campo Grande revela um cenário preocupante, segundo levantamento da delegada Daniela Kades. Em quatro anos, cerca de 400 jovens foram cadastrados, com histórico de entrada na criminalidade a partir dos 12 anos de idade. Muitos deles acabam mortos em conflitos por território ou vingança. O perfil traçado pela delegada mostra que os jovens vêm de famílias fragilizadas, com histórico de violência e parentes encarcerados. A estética do crime, marcada por tatuagens de armas e símbolos no rosto, e a figura do "bandido respeitado" servem como referência. Aproximadamente 10% dos monitorados ocupam posições de liderança em facções criminosas antes dos 30 anos.

A cada atualização, um fato se repete com frequência: “De vez em quando, eu tenho que colocar a palavra ‘morto’ ao lado do nome de mais um”. “E eu converso muito com eles, eu falo: ‘Ó, ou você vai sair dessa sua vida, ou você vai morrer’”, lamenta a delegada.

Grande parte das mortes é resultado de conflitos internos entre os próprios adolescentes, disputas por território e vingança dentro do tráfico. A violência, segundo a delegada, escalonou na cidade e aparece em forma de execuções rápidas.

“Passa motoqueiro, atira. Passa carro, atira. É briga por região, por quem vai comandar a boca. Um mata o outro, o grupo volta para cobrar e mata de novo.”

O mapeamento nasceu de um esforço pessoal da delegada para organizar os rostos, as histórias e as reincidências dos adolescentes que chegam repetidamente à delegacia.

Entre os nomes monitorados que terminaram recentemente em morte está o de Everson Pereira de Melo, de 20 anos, conhecido por “Neguinho”. Desde 2018, quando tinha 13 anos, ele já tinha passagens pela polícia: começou com prisão por tráfico de drogas, passou por receptação de objetos roubados e roubo, até chegar a uma tentativa de homicídio no ano passado. Recentemente, na madrugada de 23 de novembro, ele foi morto com quatro tiros no Parque do Lageado.

Everson é um entre tantos outros jovens que começaram no crime aos 12, 13 anos e seguiram presos ao ciclo, fazendo parte da listagem mesmo após os 20 anos, porque foram cadastrados ainda pequenos.

“A ficha começa quando eles são pititicos. Você olha a foto com 13 anos e depois vê a foto aos 17”, afirma a delegada.

A maior parte dos jovens é do sexo masculino. As meninas são poucas, cerca de 30 e, quase sempre, entram no tráfico transportando drogas para o namorado.

Mapa da trajetória de 400 jovens no tráfico mostra da infância à morte precoce
Everson Pereira de Melo exibia um fuzil tatuado no rosto (Foto: Redes Sociais)

Estética do crime - No cadastro, a delegada consegue ver a evolução de muitos meninos que são reincidentes, e casos como o de Everson são comuns na delegacia. De rostos infantis, eles passam a ter feições adultas, e um fato que chama a atenção é a quantidade de tatuagens que fazem no rosto e no pescoço.

Os desenhos preferidos são fuzis, cifrão de dinheiro, armas, fuzis, “ha ha ha” representando a risada do Coringa, Irmãos Metralha, entre outros símbolos, como o desenho de duas lágrimas. Segundo a delegada, estas podem significar a morte de alguém próximo, mas muitos fazem apenas por imitar o grupo.

“Tem menino que chega aqui com 13 anos totalmente tatuado. Tatuar o rosto virou moda. É cifrão na cara, arma, gotinha. Não é que isso tenha ligação direta com facção, é para impor respeito”, explica Daniela.

Famílias fragilizadas - A delegada Daniela Kades relata que muitos desses jovens vêm de ambientes marcados por abandono emocional, violência e histórico criminal familiar, com pais e parentes encarcerados. “A criança cresce achando aquilo normal.”

Há casos ainda em que as crianças usam crack desde os 7 ou 8 anos, cometendo furtos para sustentar o vício. “Essas crianças são doentes. Metade da vida delas foi usando drogas pesadas. E quando voltam para casa, ouvem que são um erro, que deveriam ter sido abortadas. Como esse menino vai prosperar?”, questiona a delegada.

A figura do “bandido respeitado” no bairro, com moto, dinheiro, mulheres e tatuagens chamativas, serve de referência para meninos com poucas alternativas. “Você tem que pensar com a cabeça deles. O adolescente quer status. Ele olha quem é o ‘poderoso’ do bairro. É esse cara tatuado que todo mundo tem medo.”

Mesmo assim, muitos reincidem. “Tem menino que você sabe: se sumiu, é porque está internado. Sai, volta. Sai, volta. Alguns vivem do tráfico; é a empresa deles. Têm outros adolescentes trabalhando para eles, receptam motos, adulteram veículos, fazem homicídios usando a moto de usuários que deixam o veículo empenhado na boca.”

Mapa da trajetória de 400 jovens no tráfico mostra da infância à morte precoce
Delegada Daniela Kades, da DEAJ, monitora 400 adolescentes ligados ao tráfico. (Foto: Juliano de Almeida)

Liderança jovem - Conforme a delegada, cerca de 10% dos 400 monitorados hoje ocupam posição de chefia dentro das estruturas criminosas. A análise aponta para uma forte correlação entre a liderança e a afiliação a facções. "Não tem como comandar território expressivo sem isso. Ele não vai conseguir ter um território expressivo de venda de drogas se ele não for faccionado", explica.

Outro dado relevante destacado pela delegada é a idade média dos principais chefes do tráfico hoje, que têm em torno dos 30 anos. Ela ressalta que essa ascensão precoce na hierarquia do crime é resultado de longo tempo de envolvimento, iniciado ainda na infância. "Para virar chefe antes dos 30, eles começam com 12 ou 13 anos", conclui.

É em meio a este ambiente nocivo que, segundo a delegada, ocorre a entrada precoce no tráfico e nos demais crimes.

Ficha longa - De acordo com a delegada, esse ciclo vai se escalando. “A boca de fumo recebe muita motocicleta. O menino pega a moto do usuário enquanto ele está usando droga dentro da boca, sai para fazer roubo, ameaça alguém, participa de homicídio. E tudo isso com 15, 16 anos”, explica Daniela.

Por isso, é muito comum que o adolescente passe do tráfico para fazer também a receptação de motos como pagamento pela droga, faça adulteração dos veículos para a revenda, promova roubos armados utilizando motos e utilize armas para impor respeito, cobrar dívidas, fazer ameaças e se envolver em homicídios e tentativas de homicídio.

Tudo isso, conforme a delegada, vai desembocar em duas possibilidades, a morte ou a prisão.

“Eu falo para eles. Olha o que aconteceu com o Juninho, por exemplo”, ressalta a delegada ao lembrar de Alexsandro Júnior Nunes, que começou a aparecer na delegacia ainda criança e morreu precocemente aos 16 anos.

Daniela Kades afirma que Juninho chegava a furtar 30 veículos por semana até que ele matou um rapaz e sofreu um atentado, que o deixou tetraplégico. O adolescente morreu após quatro meses de internação na Santa Casa de Campo Grande.

“A gente fica muito triste. Você o vê crescendo, vindo aqui, voltando e sabe onde vai terminar. E, infelizmente, muitas vezes termina”, completa a delegada.

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