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Artes

Da 2ª viagem ao Trem da Morte, Nelson escreveu livro em papelão

Revivendo o passado ao lado do filho, jornalista percorreu o mesmo trajeto de trem que fez 35 anos atrás

Raul Delvizio | 11/03/2021 07:01
Nelson segura livro feito em papelão sobre a experiêcia revivida do Trem da Morte (Foto: Arquivo Pessoal)
Nelson segura livro feito em papelão sobre a experiêcia revivida do Trem da Morte (Foto: Arquivo Pessoal)

Na vida de Nelson Urt, 66 anos, algumas histórias não só valeram pela experiência mas também para serem compartilhadas. Ladarense de nascença e corumbaense "por proximidade", nos anos 80 ele morava na cidade de São Paulo, onde era jornalista do jornal O Estado de S. Paulo. Mas foi pela revista Placar, no ano de 1985, onde teve a oportunidade de fazer o trajeto de SP a MS só de trem. Ainda, embarcar na aventura boliviana e inusitada do Trem da Morte – e sobreviveu para contar. Após 35 anos, ele refez o trajeto ao lado do filho e aproveitou para escrever um livro feito em papelão.

"Se trata de um livro de histórias, 'De volta ao Trem da Morte' traz fatos da vida real sobre a metamorfose que acompanha a fronteira Brasil-Bolívia nessas últimas quatro décadas. Tentei traçar um paralelo da viagem que fiz ao lado do fotógrafo Nico Esteves de São Paulo a Santa Cruz de la Sierra, pelos trilhos da antiga Noroeste do Brasil e a Ferrocarriles Boliviana – ou seja, do Trem do Pantanal seguimos para Puerto Quijarro e tomamos o Trem da Morte –, com a mais recente junto do meu filho Otávio", explica.

Já de cara, em 1985, era para tudo dar errado. "Quando o trem partiu de SP, Nico não apareceu e imaginei que ele tivesse desistido do desafio. Mas na verdade ele só perdeu o horário de acordar. Teve que na pressa contar com ajuda do pai e perseguirem de carro a locomotiva, para que ele se juntasse a mim na primeira parada, na estação de Jundiaí. Só fui descobrir isso lá, maior surpresa", relembra.

No Trem da Morte, porém, a viagem também revelou histórias inesquecíveis. "Em Corumbá juntaram-se a nós dois mochileiros mineiros, Fábio e Alex, que por pouco não foram pegos pelo fiscal do trem enquanto fumavam um baseado na cabine do trem. No corredor, tive que enrolar o fiscal com um papo-furado para que a fumaceira da cabine se dispersasse com ajuda do vento", recorda.

Imagem recente do Trem da Morte feita por Nelson (Foto: Arquivo Pessoal)
Imagem recente do Trem da Morte feita por Nelson (Foto: Arquivo Pessoal)

Já com o filho, de Santa Cruz a Samaipata, vilarejo que fica a 1950 metros de altitude já no pé da cordilheira dos Andes, pegaram uma minivan que corria em alta velocidade no zigue-zague da montanha. "Só houve um 'pequeno' incidente, quando o motorista atropelou uma distraída galinha que atravessava a pista. Coitada. Chegando lá, visitamos El Fuerte, onde existem ruínas de um antigo templo de veneração inca. A 130 quilômetros mais adiante fica La Higuera, local onde o guerrilheiro Che Guevara foi detido, preso em uma sala escolar e mais tarde executado à queima roupa", revela Nelson. Tudo isso, considera, é historicamente interessante e persuasivo para quem busca por aventuras e novos conhecimentos.

Engana-se quem corre risco de vida se tratando do caminho férreo Puerto Quijarro-Santa Cruz. Apesar do nome "perigoso", o percurso de 620 quilômetros é tranquilo. O apelido, entretanto, caiu no gosto popular no século passado, quando a rota foi utilizada para transportar pessoas com febre amarela. Mesmo que atualmente tenha uma versão mais "moderninha", o Trem da Morte continua próprio para aqueles desapegados de luxo e que levam em consideração uma experiência autêntica.

Passados 35 anos, Nelson retornou à Bolívia, desta vez com o filho (Foto: Arquivo Pessoal)
Passados 35 anos, Nelson retornou à Bolívia, desta vez com o filho (Foto: Arquivo Pessoal)
Registro feito em Santa Cruz de la Sierra, na última viagem à Bolívia (Foto: Arquivo Pessoal)
Registro feito em Santa Cruz de la Sierra, na última viagem à Bolívia (Foto: Arquivo Pessoal)

"Trinta e cinco anos depois, ao percorrer o mesmo Trem da Morte do passado, pude perceber que ele ainda é procurado pelos aventureiros. Porém, hoje ganhou o nome de Expresso Oriental e tem até ar-condicionado", agradece.

Ao refazer a viagem com seu filho, mais um "causo": "o fiscal boliviano revirou minha bagagem e descobriu que trazíamos um saquinho cheio de folhas de coca. 'Sabes que hoja de coca es proibida em Brasil?', pergunta o fiscal. "Sim, vou levar para atender o pedido de um amigo. E eu também uso para fazer chá e mascar", respondo. Ele imediatamente fecha as malas e nos libera. De volta a Corumbá, encontrei uma chola boliviana vendendo pequenos artigos, entre eles uma embalagem que despertou minha atenção. "Para que serve?", pergunto. "És una frotación (pomada) de hoja de coca para todos los tipos de dolores, reumatismos, cãibras", disse. "Vem de onde, Santa Cruz?", indago. "És de Peru", disfarça, procurando não associar o produto à Bolívia".

Trem da Morte cruza 620 quilômetros pelo país vizinho (Foto: Reprodução)
Trem da Morte cruza 620 quilômetros pelo país vizinho (Foto: Reprodução)

Livro artensanal – Tudo isso é contado nas 103 páginas do livro-reportagem "De volta ao Trem do Pantanal", uma produção jornalística e manual do próprio Nelson. Feito de papelão, a ideia foi fabricar algo independente, de baixo custo e que pudesse ampliar o acesso à arte literária.

"Isso incentiva a qualquer um publicar um livro por conta própria, com poucos recursos. O livro cartonero surgiu em meados de 2003 na Argentina diante da grave crise econômica do país. Várias editoras fecharam. Juntos, um professor e um escritor decidiram manufaturar seus próprios livros montando capas com sobras de papelão que coletavam nas ruas", esclarece. A publicação de Nelson segue o mesmo modelo.

Capa do livro cartonero de Nelson, onde fez pose em clique de 1985 (Foto: Arquivo Pessoal)
Capa do livro cartonero de Nelson, onde fez pose em clique de 1985 (Foto: Arquivo Pessoal)

Os livros cartoneros – da palavra cartón, papelão – contam com o miolo em papel reciclado. Já as capas não necessariamente iguais, pois são desenhadas a mão. Inspirado em outras editoras independentes no eixo latino-americano, Nelson criou na cidade de Ladário a editora Maria Preta Cartonera. O ano foi 2019. "Até agora, já foram 8 títulos publicados, entre livros de poesias, crônicas, ensaios, artigos, contos e agora por último o 'De volta ao Trem da Morte'", ressalta.

Dos 22 exemplares do livro-reportagem, 14 foram parar nas mãos de velhos amigos de São Paulo. "O jornalista João Pedro Nunes, que tive a oportunidade de trabalhar no Estadão nos anos 80-90, disse que viajou comigo no livro. Sentiu-se quase que dentro do trem. Fiquei muito feliz com esse feedback porque o objetivo do livro cartonero não é massificar a tiragem, mas sim cultivar e espalhar boas leituras. Sem essa de comprar o livro apenas para agradar ou apoiar o lançamento. Para os meus colegas de jornal, espero um dia escrever as histórias sobre o Mutamba, antigo reduto dos jornalistas do Estadão e do Diário Popular. Bar, inclusive, bastante frequentado por Raul Seixas quando ele morava em hotéis da rua Augusta", assegura.

Em Ladário, Nelson criou a editora Maria Preta Cartonera, já com 8 títulos (Foto: Arquivo Pessoal)
Em Ladário, Nelson criou a editora Maria Preta Cartonera, já com 8 títulos (Foto: Arquivo Pessoal)
É na frente de sua casa que montou uma venda improvisada ao estilo de sebo (Foto: Arquivo Pessoal)
É na frente de sua casa que montou uma venda improvisada ao estilo de sebo (Foto: Arquivo Pessoal)

Na pandemia, Nelson voltou a cruzar a fronteira Brasil-Bolívia em dezembro de 2020, reaberta após meses de fechamento devido à covid-19. Assim, foi apresentar aos "hermanos" bolivianos o livro cartoneiro "De volta ao Trem da Morte".

"Passei pela feirinha de Arroyo Concepción, pela praça central e a prefeitura de Puerto Quijarro, comi salteña e dei um pulo até a Estação Ferroviária com os primeiros exemplares do livro cartonero. Lá é a primeira parada da linha que segue o percurso de trem até a cidade de Santa Cruz de la Sierra, e na sequência mais 900 quilômetros até a capital La Paz. Lojas, restaurantes e lanchonetes que eram tomadas por turistas brasileiros agora é na Cidade Branca que as ruas vivem tomadas pelo estrangeiros que falam espanhol. É o reflexo financeiro da pandemia… mas vocês irão perguntar: e o Trem da Morte, ainda sobrevive? Isso só lendo o livro para descobrir".

Serviço – Exemplares de "De volta ao Trem da Morte" ou outros livros cartoneros da editora Maria Preta Cartonera podem ser encomendados por inbox do Facebook, telefone (67) 98439-3002 ou pelo e-mail nelsonurt@gmail.com. O preço básico é R$ 28,00 (para entrega em Corumbá, Ladário e Puerto Quijarro), com acréscimo de R$ 7,40 (postagem nacional) para envio por correio a todo o Brasil.

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