Bar é do Paraguai, mas quem manda é Dona Adélia no Vivendas do Parque
Casal chegou ali quando só havia mato, vela e coragem; hoje comanda o boteco onde ninguém canta de galo

No Vivendas do Parque, existe um bar que não nasceu de um plano de negócios, de um empréstimo no banco ou de uma planilha de Excel. Nasceu de teimosia, pedaladas de 20 quilômetros por dia, trabalhos que começavam antes da luz, literalmente, porque luz não tinha, e de um amor que dribla cansaço, vende sanfona e ainda cria neto com orgulho estampado no letreiro.
O nome do lugar é Boteco do Carlinhos, mas a verdade está escrita no cartaz pendurado perto do balcão, desses que não deixam espaço para dúvida, interpretação ou abuso alcoólico: “O bar é do Paraguai, mas quem manda é a Adélia.”
E se alguém duvidar, basta observar dois minutos o vai-e-vem de cadeiras, pedidos, latinhas e olhares atentos. Dona Adélia Garcia, 66 anos, é pequena só no tamanho. No resto, ocupa o bar inteiro.
Ao lado dela está o marido, Ângelo Acosta, 72, paraguaio nascido “no meio da roça”, músico aposentado, ex-pedreiro, contador de histórias, homem de riso largo e que entrega de bom grado o posto de comandante à esposa. “Todo mundo tem medo é dela, não de mim”, ele diz, gargalhando enquanto serve um dos amigos.
“Ele inventa muita coisa, viu?”, avisa Adélia, antes que o marido abra a boca. A advertência é feita com carinho, mas também com seriedade suficiente para que nenhum freguês nunca tenha ousado testar a paciência dela depois da terceira cerveja.
A história do casal com Campo Grande começou há 40 anos, quando escolheram o que na época era praticamente o fim do mundo ou o começo de tudo: o loteamento do Bairro Maria Aparecida Pedrossian.
“Era tudo mato. Tinha quatro casas. E nada de luz”, lembra Ângelo. O preço? R$ 1.500, valor que hoje paga, com sofrimento, meio aluguel de kitnet.
Sem ônibus, Adélia pedalava até o São Bento, após cozinhar, limpar, passar roupa e fazer a marmita fresca do marido. Fresca mesmo, nada de requentar. “Era comida do dia. Ele não comia comida guardada. A marmita já saía quente da panela.”
Os dois construíram sozinhos a casa. Tijolo por tijolo, sábado e domingo, enquanto o bairro demorava a nascer ao redor. Para ter água, Ângelo instalou 30 metros de mangueira, puxando de onde dava. À noite, a vela iluminava, o rádio acordava e, como diz Adélia, “era tudo muito difícil, mas a gente tava acostumado. Nem cansava.”
Quando o assunto é como a história de amor começou, Ângelo ri e manda a versão dele: “Eu tava a cavalo, joguei o laço e peguei ela.” A versão dela: “Mentira dele. Eu conheci ele músico, sem roupa, só com a sanfona e uma toalhinha.”
Na dúvida, acreditamos na Adélia. Segundo ela, o maestro galanteador vivia tocando por aí, dormia em mesa de sinuca e deixava o dinheiro “na cachaça”. Até que ela, firme, decretou: Ou vende essa sanfona ou nós não vamos pra frente.
A sanfona foi vendida. Ângelo virou pedreiro dos bons. E a vida começou a comportar calça nova, comida quente e contas pagas. O nascimento do boteco foi há cinco anos como terapia, renda e ponto de encontro.

Quando Ângelo aposentou, Adélia viu o perigo imediato: “Vai entrar em depressão. Homem parado não dá.” Pensaram em alugar o salão para igreja, mas “igreja crente só gritaria”, brinca ela. Resolveram abrir um bar, pequeno, simples, para preencher o tempo e garantir movimento.
De um freezer e um engradado por vez, nasceu o Boteco do Carlinhos, nome pedido pelo neto de 15 anos, que trabalha na barbearia ali perto e manda mensagem toda tarde perguntando se o avô está bem.
Cinco anos se passaram. O bar virou documento vivo do bairro. Não tem música alta, não tem molecada fazendo algazarra, não tem briga, não tem fiado para quem não merece. O recado está claro perto da geladeira: “Não confunda amizade com fiado.”
E se alguém tentar bater boca, Ângelo sabe o que fazer: “Uai, o que que tá acontecendo?”
E aí Adélia aparece. É o suficiente. “Todo mundo baixa a bola. Eles têm medo é de mim”, ri Adélia.

O bairro cresceu, o bar também, mas a alma é a mesma. Os velhos clientes chegam cedo. Às 19h, 19h30, Adélia já começa a catar cadeiras discretamente. É o sinal universal de que está na hora do pessoal ir embora. E eles vão. Porque ali se respeita a dona do ponto. “A noite é tranquila, é familiar”, garante o casal.
Nas prateleiras, garrafas de pinga, catuaba, jamelão e até “pinga para passar na perna” em caso de dores.
As histórias correm soltas. Sobre o caju que nunca dá tempo de colher porque o louro come tudo. Sobre os irmãos espalhados no Paraguai e em Bela Vista. Sobre os vizinhos que viram árvores crescerem e postes aparecerem. Sobre o medo que nunca existiu e a violência que nunca bateu ali. Sobre a rotina de abrir às 6h, limpar, cuidar, observar, acolher.
É um bar sem segredos, mas dependendo de quem passa ali corrido pode imaginar que é só mais um boteco de bairro. Mas seria erro. Ali, tudo tem muita história, trabalho duro, amor de um casal que se escolhe todos os dias. Inclusive, o casal revelou que não bebe mais, mas que vende alegria em long neck e latinha.
Adélia diz que vai ficar ali “até chegar a hora de ir embora”. Sem drama. Só aceitação tranquila de quem viveu tudo que tinha de viver e ainda ri enquanto conta as dificuldades. Ângelo, ao lado, brinca, inventa histórias e tem certeza de uma coisa: “O bar é meu. Mas quem manda é ela.”
E quem frequenta o Boteco do Carlinhos sabe: ainda bem. Porque a mulher é de fibra. Por fim, fizemos o pix de uma cervejinha gelada à dona Adélia e saímos bem felizes na última sexta (28).
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