Até quando o nosso sangue indígena será derramado?
Já se vão quase quarenta anos desde o momento no qual passamos a ter a força da lei em nosso favor, no sentido de que a demarcação das terras indígenas fosse executada de forma célere com base na atenção que a Constituição Federal do Brasil de 1988 concedeu ao assunto. No entanto, quais os motivos de tanto atraso, até aqui, na execução dessa legislação tão vital à continuidade de nossa história de existência e de resistência?
O descaso com o cumprimento da lei produziu várias situações adversas às comunidades indígenas no país. Diante dessa dura realidade, ficamos a pensar, a refletir e a buscar respostas à seguinte indagação: até quando mais sangue nosso será derramado? O que compreendemos até aqui é que tem sido alto o preço pela pouca atenção concedida pelo poder público à demarcação de nossas terras. Será mesmo que muitos outros irmãos nossos tombarão, considerados invasores e criminosos e assim julgados por aqueles que, de fato, são os verdadeiros invasores daquilo que é nosso há séculos?
A morosidade do poder público é angustiante. Essa falta de respeito e de consideração com os povos originários multiplica os casos de agressão aos indígenas que vão à luta no afã de, plenamente, termos concretizado o direito de como queremos viver em nossos territórios ancestrais. Os casos mais recentes de indígenas cujas vidas foram ceifadas na reivindicação por seus territórios comprovam o quanto o Estado, nos últimos trinta anos, pouco fez para que a Constituição por completa fosse cumprida naquilo que a mesma preconiza em relação à demarcação dos nossos territórios.
Os assassinatos de indígenas em várias partes do Brasil demonstram o quanto ainda somos alvo de grupos inescrupulosos, em uma tentativa de se perpetuar a visão que considerável parte do país possui a nosso respeito, ou seja, merecedores de continuarmos sendo alvo da artilharia pesada em posse daqueles que, implacavelmente, perseguem os povos originários desde o início da colonização por estas terras. A ganância por mais e o olhar mirado nos lucros a qualquer custo, mesmo que haja a destruição de vidas, de culturas e da existência de povos, fazem parte de um motor que despeja morte e caos para cima dos indígenas considerados entrave ao "progresso e ao desenvolvimento da nação". Infelizmente, algo já direcionado a nós há mais de cinco séculos.
Lamentamos profundamente as vidas perdidas e todo ataque sofrido pelos povos originários, quando a grande mídia noticia casos que, fatalmente, cairão na teia do esquecimento histórico relacionado às injustiças sofridas pelos indígenas ao longo dos séculos no Brasil. Apesar de sermos constantemente tentados a esse tipo de desânimo, é preciso deixar bem claro que cada mandante e executor de um assassinato a um indígena seja julgado e punido sob o rigor que a lei impõe. E mais, que sejam conhecidas pelo país as reais motivações e as articulações que culminam em mortes por várias partes do país de parentes nossos que, tão somente, pediram e agiram pelo cumprimento do que a Carta Magna fala sobre a demarcação de nossos territórios.
Não podemos deixar de afirmar o entendimento que temos com relação a todo apoio a nós necessário, quando pensadas as formas como o não indígena propaga as narrativas das elites dominantes. E, nesse sentido, os aliados que se colocam em público ao nosso lado merecem todo o reconhecimento. Afinal, não faltam relatos atuais de depreciação e de desrespeito a muitos que se juntam a nós nas lutas empreendidas por nossos povos na concretização dos direitos que possuímos. Em muitos casos, o estar conosco significa caminhar perigosamente na linha que divide a vida da morte, que o digam as memórias de Dom Phillips e de Bruno Pereira.
Na labuta diária dos povos originários, principalmente às ligadas ao assunto da demarcação dos nossos territórios, há uma outra parcela da sociedade convidada para tal. Conclamamos os educadores deste país a ações pontuais, pelas quais os espaços escolares e os alunos recebam informações corretas a respeito de nossa luta de décadas pela devolução de nossos territórios. Não há dúvidas, os espaços escolares têm sido importantes bases de uma correta conscientização do país naquilo como o não indígena, em público, se posicionará a respeito do assunto. Impactantes mudanças, nesse sentido, estão diretamente relacionadas ao que os currículos escolares trabalham sobre a história e a cultura dos povos originários.
Confiamos ainda que cada legislador, operador de direito e representante do executivo faça valer a força de sua autoridade e o cumprimento à legislação, a fim de que haja o real respeito ao direito que temos às nossas terras. Por mais que, nos bastidores da história do país, em termos de passado e de presente, sejam robustos os planos e estratégias firmados da não devolução de nossos territórios, prosseguimos em acreditar em autoridades sérias e comprometidas com a justiça a ser evocada, isso em todos os inúmeros processos ainda não concluídos sobre a devolução de terras a inúmeros povos pelo Brasil.
Reafirmamos, não somos bandidos, muito menos criminosos, agimos sim na busca de nosso direito à terra respeitado. Por mais que haja com enorme intensidade inúmeras manobras no intuito de nós culpabilizar, nossa luta é digna, embasada em termos legais e, portanto, justa. Assim, que o Brasil e, principalmente, suas novas gerações passem a ter bons olhares direcionados às reivindicações históricas realizadas pelos povos originários, sendo combatido todo um conjunto de depreciações, discriminações e racismo a nós direcionado historicamente, quando discutida a temática relacionada ao direito a nossos territórios.
(*) Kleber Gomes é indígena terena e mestre em Ensino de História pela Uems (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul).
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