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Borba, meu padrinho

Por Heitor Freire (*) | 29/08/2016 14:03

No universo das relações humanas, há uma com destaque especial que muitas vezes passa despercebida, cumprindo quase sempre uma formalidade que depois vai perdendo o significado pela falta de consciência de boa parte das pessoas a respeito de sua finalidade.

Refiro-me ao papel do padrinho. O padrinho assume um compromisso perante o afilhado e a sua família de suprir a falta dos pais e de dar orientação permanente ao afilhado, independentemente do tempo transcorrido desde a assunção dessa responsabilidade.

Eu me considero um ser privilegiado. Pela minha formação familiar, de antepassados, de cônjuge, de filhas, genros, netos e parentes. E também pelos meus padrinhos que, ao longo do tempo foram se materializando, influenciando e orientando a minha caminhada.

Os meus padrinhos de batismo foram meus tios Manoel Cândia Andreau e Adela, irmã da minha mãe. Quando, em 196l, tomei posse como funcionário do Banco do Brasil, em Ponta Porã, fui carinhosamente acolhido por eles que me hospedaram até que eu me ambientasse e me instalasse por meios próprios.

Os padrinhos do nosso casamento foram Elpídio Peluffo e Otília, Luiz Anzoategui e Irene e Oswaldo Mendes Gonçalves e Cecy, que muito nos influenciaram e sempre nos orientaram. A madrinha Irene, costureira de mão cheia, foi quem confeccionou o vestido de noiva da Rosaria.

Quando o padrinho Luiz Anzotegui se aposentou da poderosa Companhia Mate Laranjeira, da qual era gerente geral, mudou-se para Campo Grande onde eu já residia e então o convidei para ser o administrador da nossa imobiliária, convite que ele aceitou e foi por muitos anos quem comandou a nossa empresa.

No momento em que a Rosaria, já desobrigada de suas funções domésticas, passou a integrar o nosso escritório, foi ele que com muita paciência e carinho foi ensinando a ela os rudimentos da administração. E ela foi uma aluna aplicada à altura do mestre.

O meu padrinho de crisma, quando já tinha 27 anos, foi o meu colega, amigo e companheiro no Banco do Brasil Douglas de Jesus Mamoré, cuja liderança deixou em mim marcas perenes de seriedade, responsabilidade e compromisso com o trabalho. O Douglas era um profissional tão competente que com 2 anos de banco, fato raríssimo, assumiu a gerência adjunta da nossa agência em Ponta Porã.

Agora, o homem que também marcou profundamente a minha vida foi o meu padrinho José Camargo Borba, que abriu para mim as portas da Maçonaria, instituição sublime que me permitiu palmilhar o caminho que estou trilhando há 36 anos e que irei seguir por toda a minha existência.

O Borba sempre dizia que sua missão era salvar vidas. E assim foi, realmente, em dois episódios de sua vida: a primeira, quando ainda guri, aconteceu aos 11 anos. Nessa época, ele voltava diariamente da escola e passava na rua 15 de Novembro onde cumprimentava uma senhora, dona Rita Taveira, que costumava se sentar à frente de sua casa.

Um dia voltando da escola, percebeu que essa senhora estava passando mal, ela lhe disse: “Meu filho, estou morrendo”. Borba, respondeu “Não se mexa”, e foi correndo chamar a filha dela.

Chegaram de táxi e a levaram ao médico, dr. Vespasiano Barbosa Martins, que a medicou salvando-a da morte. A medicação ministrada exigia que o remédio fosse aplicado a cada três horas ininterruptamente, durante oito dias. Como a filha da dona Rita não poderia ficar com ela de dia e de noite, ele, autorizado pela sua mãe, ficou durante todo esse tempo como um enfermeiro aplicado e assim salvou sua vida.

Aos quatorze anos Borba foi trabalhar como aprendiz de marceneiro na indústria de móveis do Terruta Ishy, onde logo se destacou e depois de um ano se transformou em mestre de acabamento.

Quando foi convocado para servir o Exército, no 10º Regimento de Cavalaria em Bela Vista, licenciou-se da indústria pelo tempo de sua incorporação. Era o tempo da Segunda Guerra Mundial e o contingente era composto em sua grande maioria por nordestinos, muito agressivos e analfabetos, que contendiam entre si e estavam sendo preparados para serem enviados à Itália.

Foi ali que, por sua postura, equilíbrio e bom senso, pôde evitar que houvesse derramamento de sangue. Em determinada ocasião, houve um confronto entre dois grupos que armados de peixeiras se prepararam para uma luta de vida ou morte, e o Borba, corajosamente, se postou entre eles e conseguiu acalmá-los e pacificá-los.

Na véspera do embarque para o Rio de Janeiro, acabou a guerra e Borba foi desmobilizado, voltando para Campo Grande e para a indústria de móveis. Recomeçou seus estudos concluindo o ginásio e seguiu o curso de técnico em contabilidade na Escola Técnica de Comércio Carlos de Carvalho, onde conheceu, no primeiro dia de aula, uma colega que lhe impressionou fortemente sentindo uma vibração intensa que envolveu todo o seu corpo. Era a Erothildes com que se casou logo que concluíram o curso em 1950. Tiveram três filhos: Nei, médico pediatra; Margarete, advogada e o Júnior, cirurgião dentista.

Já formado, Borba decidiu iniciar sua vida profissional em um grande centro, onde as oportunidades seriam maiores do que em Campo Grande. Mudou-se para São Paulo, onde se apresentou ousadamente num dos maiores escritórios de contabilidade da capital paulista. Passou por uma avaliação sendo admitido de imediato. Logo foi galgando os mais elevados cargos, com salários acima da média de seus colegas. Como homem previdente e de objetivos bem definidos, foi fazendo seu pé-de-meia.

Depois de cinco anos Borba decidiu que era hora de voltar a Campo Grande. Quando comunicou sua decisão ao dono do escritório, este procurou dissuadi-lo, acenando com a possibilidade de um futuro promissor na empresa. Mas Borba estava determinado, como sempre. Já havia comprado moveis, máquinas e equipamentos para o seu futuro escritório.

Chegando a Campo Grande Borba deparou-se com uma situação inesperada. Ao instalar seu escritório recebeu a visita de 10 contadores que constituíam um clube fechado, autodenominado “Grupo dos Dez”, que não admitiam a constituição de nenhum outro concorrente. Assim, recebeu a intimação de fechar o seu escritório ou de subordinar-se a um deles.

Evidentemente Borba não aceitou essa imposição, e, determinado, decidiu enfrentar o Grupo, iniciando o seu trabalho com essa dificuldade quase intransponível, mas que, mercê da sua determinação, coragem e força, foi vencendo aos poucos, encontrando apoio em alguns comerciantes. Por essa ação firme foi também permitindo e inspirando a instalação de outros escritórios.

Em pouco tempo adquiriu fama e conquistou clientes que lhe foram fiéis por todo o tempo em que exerceu a profissão. O seu Escritório de Contabilidade São Paulo, ocupou um lugar de destaque no concerto dos demais escritórios em nossa cidade.

A sua influência não ficou restrita apenas ao campo profissional. Teve atuação destacada no meio social e sindical. Foi ele quem conseguiu a doação de uma área para construção da sede social do sindicato dos contabilistas, doado pelo então prefeito Levy Dias. Borba constituiu o Colégio de Vogais que fundou a Junta Comercial do Estado de Mato Grosso do Sul, do qual fez parte por longos anos.

Foi esse cidadão, a quem presto hoje esta homenagem e o meu preito de gratidão, que influenciou a minha vida e a de muitos homens e mulheres em nossa cidade. Eu pretendia, na verdade, escrever um livro sobre a sua rica trajetória, na série “Eu Sou História”, do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, mas ele, na sua simplicidade, não aceitou.

Hoje com 93 anos de idade, Borba continua firme, lúcido, ativo, frequentando academia de ginástica duas vezes por semana, e permanece alegre e contente como sempre.

Heitor Freire, com o coração pleno de gratidão.

(*) Heitor Freire é corretor de imóveis e advogado.

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