Do VAR às matrioskas
A Copa do Mundo de 2018 chegou ao fim no último dia 15 de julho, após 32 dias nos quais nos habituamos a ver jogos e noticiários referentes às 32 seleções que se juntaram na Rússia para celebrar o evento maior do futebol mundial.
Ano após ano, a competição parece tornar-se cada vez mais rentável para sua entidade promotora, a Fifa, cujo presidente, o ítalo-suíço Gianni Infantino, chegou a proclamar em Moscou que havíamos assistido à melhor copa de todos os tempos, tamanho o sucesso financeiro e esportivo do torneio.
Tal qual como nos primeiros versos do poema “José”, de Carlos Drummond de Andrade, poderíamos nos perguntar “E agora, José? / A festa acabou, / a luz apagou, / o povo sumiu, / a noite esfriou, / e agora, José? (…)”. É provável que, de fato, tenha sido esse o sentimento experimentado por milhões de estrangeiros que estiveram na Rússia para acompanhar o Mundial.
Agora que a festa acabou, e como sempre acontece ao fim de uma Copa do Mundo, a imprensa rapidamente começa a listar quais as heranças a Copa deixará para o futebol mundial nos próximos anos. Embora ainda seja um pouco prematuro tecer considerações tão conclusivas sobre uma competição recém-terminada, algumas tendências parecem ganhar força e devem pavimentar um percurso sem volta até a Copa do Qatar, a ser disputada no final de 2022.
Inicialmente, tivemos a presença cada vez maior de mulheres na cobertura esportiva e inclusive em algumas delegações das equipes. Não à toa, a presença mais marcante e simbólica na cerimônia de entrega dos prêmios da final da Copa era a da presidente da Croácia, Kolinda Grabar-Kitarović, com a roupa encharcada em meio à chuva moscovita e ao mesmo tempo satisfeita com o vice-campeonato de seu país.
"O padrão espanhol do Tiki-Taka (constante posse de bola e troca incessante de passes laterais por todo o campo) que vigorou com força nos últimos dez anos pode dar lugar agora a uma nova forma de se encarar o ludopédio"
Antes da aparição da mandatária croata, outra aparição simbólica coroou aquela decisão do Mundial: três mulheres e um homem, ativistas do grupo punk feminista Pussy Riot, invadiram o gramado do Estádio Luzhniki no início do segundo tempo da partida entre França e Croácia a fim de chamar a atenção para pautas feministas e protestar contra o governo russo.
Não fosse por isso e o presidente Vladimir Putin poderia dizer que foi ele o maior vitorioso da Copa de 2018: a Rússia organizou um evento sem maiores problemas e sem ocorrências de violência entre os torcedores (ao contrário do ocorrido na Eurocopa de 2016 na França).
Além disso, conseguiu vender uma imagem extremamente positiva de seu povo para o olhar estrangeiro. As Matrioskas – as simpáticas bonecas de madeira russas que simbolizam a maternidade e a fertilidade – são um dos maiores emblemas desse legado russo simpático que se contrapôs à imagem de um país frio e rígido em seus costumes.
Outra tendência advinda com esta Copa diz respeito à sintaxe do jogo: a posse de bola deixou de ser primordial para o sucesso das equipes – e a campeã França notabilizou-se por manter a bola nos pés por pouco mais de 1/3 das partidas que disputou. O padrão espanhol do Tiki-Taka (constante posse de bola e troca incessante de passes laterais por todo o campo) que vigorou com força nos últimos dez anos pode dar lugar agora a uma nova forma de se encarar o ludopédio.
A par da posse de bola, o VAR ou vídeo-árbitro é outra medida que marcou indelevelmente esta Copa e que certamente voltará mais aprimorado para a Copa do Qatar. A busca insana pela tal “verdade desportiva” criou ilusões sobre a eficácia dos dispositivos de vídeo, e o Mundial da Rússia trouxe mais polêmicas de arbitragem do que a Copa de 2014 realizada no Brasil.
De todo modo, os meios de comunicação e os fabricantes de aparelhos eletrônicos devem forçar o alargamento do uso do VAR nos próximos anos. Seus custos, entretanto, inviabilizam sua utilização em jogos de divisões secundárias em todo o mundo, algo que pode comprometer a universalização da aplicação das regras do jogo, justamente um dos motivos para o futebol ser um esporte tão difundido em todo o planeta.
No caso brasileiro, uma tendência histórica que não se alterou foi a de nos solidarizarmos com as equipes que, aparentemente, parecem-nos ser mais frágeis ou representarem países não hegemônicos. Era flagrante a preferência de locutores e torcedores nacionais pela Croácia em detrimento da França, algo que diz muito sobre como lidamos com o futebol e com a vida.
De um lado, tínhamos uma Croácia aguerrida e valente, com recursos técnicos finitos, mas muito forte no conjunto e na força de vontade. Trocou de técnico no final do ano passado, teve que disputar uma repescagem europeia e mostrou pouco planejamento de médio ou longo prazo. Para além disso, pipocaram diversas denúncias de manifestações racistas e fascistas protagonizadas por jogadores, torcedores e dirigentes croatas nos últimos tempos.
De outro lado, tínhamos uma França com jovens valores talentosíssimos e um projeto de longo prazo, com a manutenção do técnico nos últimos seis anos, mesmo perdendo uma Eurocopa em casa em 2016.
Essa França miscigenada e imigrante, combatida internamente com estardalhaço pela direita francesa, expôs todos os seus paradoxos neste Mundial e pareceu afastar parte da preferência brasileira justamente por aquilo que ela espelha de nossa realidade, por um lado, e por aquilo que ela não reflete, por outro. Parece que o olhar futebolístico brasileiro não permite reconhecer talentos e habilidades em jogadores que representem nações com um passado colonial.
Em meio a tudo isto, uma certeza se impõe: até o início da Copa do Qatar em novembro de 2022, vamos pôr em prática outra tendência brasileira infinita, que é a de sonharmos com mais um título brasileiro, ou seja, de nos iludirmos com o “Hexa”, como se o Brasil fosse o único país do futebol.
Foi preciso que uma Copa fosse sediada na Rússia, o maior país do planeta em área territorial, para que percebêssemos algo distinto: que há vários países do futebol e que talvez sejamos um universo do futebol, no qual as fronteiras se diluem cada vez mais, e astros fazem sucesso independentemente do país em que nasceram ou do sangue que corre em suas veias.
(*) José Carlos Marques é membro do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa sobre Futebol e Modalidades Lúdicas) da USP.