Isto não é um smartphone
A Antropologia Digital e o fantasma da aldeia global
Nos últimos anos, tenho insistido na urgência de que comunicadores se aproximem do campo da Antropologia Digital — uma derivação contemporânea da Antropologia tradicional, mas que desloca o olhar do etnógrafo da aldeia física para os espaços simbólicos das redes digitais. Se a Antropologia tradicional se ocupava de compreender o humano por meio da observação participante em comunidades delimitadas no tempo e no espaço — estudando seus rituais, mitos, tabus e sistemas de parentesco, a Antropologia Digital tenta reconstruir o sentido de comunidade num território difuso e fragmentado, mediado por algoritmos e interfaces. Ela busca entender o comportamento humano diante do espelho retroiluminado do smartphone, onde se misturam o sagrado e o profano, o público e o íntimo, o real e o imaginado.
Do rito de passagem ao scroll infinito
Arnold Van Gennep, no início do século 20, descreveu os ritos de passagem como estruturas simbólicas que marcam transições: nascimento, casamento, morte. Victor Turner, ao desenvolver a noção de communitas, mostrou que os rituais não apenas separam, mas também integram: eles dissolvem hierarquias e criam laços entre os participantes.
Roberto DaMatta, ao observar o Carnaval e a casa e a rua no Brasil, nos ensinou a perceber as nuances da identidade social brasileira: o lugar das máscaras, da inversão, das hierarquias e da convivência ambígua entre o vazio e o preenchimento das ruas e das casas. Hoje, porém, nossos rituais migraram para a palma da mão. Os ritos de passagem se transformaram em rolagens infinitas, os símbolos de pertencimento em hashtags efêmeras, e a communitas cedeu lugar a bolhas de confirmação e suspeita. O smartphone tornou-se o novo altar, mas um altar portátil, profano.
O totem estilhaçado
Costumo chamar esse campo de observação de Antropologia do Smartphone.
Radicalizando minhas imprecisões — como convém a quem prefere o inacabado ao dogmático, vejo o smartphone como o totem estilhaçado de nossos tempos. Ele carrega, como o totem de outrora, o poder de reunir o grupo em torno de um símbolo comum; mas esse símbolo está fragmentado, saturado de imagens, sons, alertas e notificações que nos conectam sem vínculo, que nos informam sem conhecimento, que nos aproximam sem encontro. O totem contemporâneo é uma prótese nervosa, um fetiche da presença ausente. Sua força mágica foi capturada por algoritmos que, longe de construírem uma “aldeia global”, como previa McLuhan, fabricam uma multidão dispersa, cansada, vigiada e desorientada. As extensões do homem tornaram-se extensões do mercado.
O novo pajé
Se antes o pajé mediava o contato com o sagrado, o mistério e o coletivo, hoje ele veste um manto tecnológico: é o programador, o engenheiro de dados, o gestor de plataformas. Mas esse novo xamã é interesseiro — opera não para construir comunidade, mas para monetizar atenção. A liturgia algorítmica do engajamento substitui o rito de pertencimento. E o que poderia ser vínculo se converte em desconfiança: uma ritualística da suspeita e do controle, em que o poder espiritual é substituído por métricas e a transcendência, por notificações.
A traição das imagens
Em 1929, o pintor René Magritte nos apresentou La Trahison des Images – “A traição das imagens” – e sua sentença enigmática: Ceci n’est pas une pipe. Magritte nos advertia sobre o abismo entre a coisa e sua representação. Hoje, esse abismo se multiplicou. O que chamamos de smartphone não é mais um instrumento de fala, mas um portal para a construção e a destruição simultânea da realidade.
Não é um smartphone, é uma fábrica de simulacros, uma máquina de rituais vazios, uma extensão do olhar vigiado. Vivemos a traição dos sentidos: duvidamos da visão, da audição, do tato, do olfato e até do paladar, todos mediadores capturados pela indústria digital da sensação.
Contra os novos monopólios do sagrado
Passou da hora de duvidarmos não apenas das imagens, mas dos rituais de informação produzidos pelos monopolistas das tecnologias digitais. Sob o discurso da liberdade, promovem a desregulamentação selvagem da comunicação, destruindo o tecido comunitário e simbólico que sustentava a confiança nas relações humanas. Se antes a antropologia nos ensinava a compreender os rituais como instrumentos de coesão, hoje precisamos de uma nova etnografia da dispersão , uma antropologia crítica dos algoritmos.
Talvez o primeiro passo seja olhar para o smartphone, esse totem fragmentado, e sussurrar, com Magritte: “Ceci n’est pas un smartphone”. É o espelho onde a aldeia se perdeu de si mesma.
(*) Por Paulo Nassar, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP.
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