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Capital

Olhe a pandemia de dentro de um hospital. Nunca mais você vai duvidar

Quem tem parente internado nesses dias de covid, sente o impacto mesmo sendo por outras doenças

Marta Ferreira | 14/03/2021 14:23
Até dá para fazer foto bonita da vista da cidade a partir da enfermaria do hospital. Mas ali dentro, é onde a pandemia mostra sua face mais terrível. (Foto: Marta Ferreira)
Até dá para fazer foto bonita da vista da cidade a partir da enfermaria do hospital. Mas ali dentro, é onde a pandemia mostra sua face mais terrível. (Foto: Marta Ferreira)

Dentro do hospital, a realidade caótica sobre o vírus letal causador da covid-19 é jogada na cara até de quem não está ali por causa dele. Se há tratamento de choque para enxergar a gravidade da situação, visitar ou acompanhar um doente internado nesses dias de abalo na saúde talvez seja a prescrição certeira àqueles capazes de, após 12 meses de emergência sanitária,  ainda se manter avessos aos cuidados recomendados por cientistas, médicos, autoridades de saúde...

A sentença acima é de alguém em convívio com esse ambiente desde primeiro de janeiro de 2021.

Mal o celular havia marcado uma hora de início deste ano e estávamos levando nossa mãe para o pronto-socorro.  Ela não respirava quase. “Será que é o tal do coronavírus”, perguntava, com o peito chiando, a voz de angústia.

Foram minutos, mas pareceu uma multidão mental de tempo, até decidir se acionava o Samu, atribulado com tanta gente pedindo socorro, ou se íamos por conta própria para a emergência. Não esperamos. Na emergência, Maria entrou direto para a intubação.

Tudo indica que é covid”, acreditava o médico alguns minutos depois do atendimento, diante da saturação bem aquém do mínimo ideal. “Mais meia hora e ela não suportaria”, emendou.

Baqueamos, sentimos culpa, pois se ela não saía de casa nos últimos meses, o vírus só poderia ter sido levado por um de nós, apesar dos esforços.

Foi para a UTI (havia vagas sem sofrimento nesse período). Novos exames e o diagnóstico diferente: não parecia ser covid, mas os testes ainda seriam feitos.

O primeiro, o rápido, deu negativo. O segundo, o PCR, aquele do cotonete no nariz, demoraria pelo menos mais três dias para ficar pronto. Enquanto isso, o quadro de insuficiência respiratória era controlado.

Feito nesse interim, o terceiro exame, o de antígeno, também negativo. A certeza dos médicos só veio uns cinco dias depois, quando o teste biomolecular, o mais confiável, confirmou os anteriores.

Não era a temida doença. Tinha-se quadro grave, relacionado a severa crise de hipertensão, mas esse a Medicina conhece e sabe dominar, como o fez. Maria ficou cerca de 50 dias no hospital e está em recuperação, em casa.

O vírus entre nós, sempre - O livramento do inesperado prognóstico da covid não impediu que, em todos os dias já vividos em 2021, fossemos expostos aos efeitos da pandemia em alto grau.

Não houve visita enquanto a internação era na UTI, não teve conversa com médico todo dia, como é feito usualmente. Sabe-se do doente por meio de frios e sucintos boletins por escrito, sem horário exato para sair. O médico não tem tempo: ou ele trata os acamados, ou atende as famílias.

O rosto dos responsáveis por salvar a vida de Maria a gente não conheceu direito. A máscara está lá sempre, do lado de cá e do lado de lá, como tem de ser.

No ar, diuturnamente o peso do “vírus maldito”. Tudo que você faz parece representar risco invisível. Haja lavagem de mãos, álcool, luva e capote.

Há mais tensão no ambiente já difícil de lidar, principalmente quando a acompanhante da vizinha de enfermagem decide “não gostar muito de usar máscara”. Nesse episódio, foi preciso acionar a equipe do hospital para chamar atenção da pessoa.

Entre os trabalhadores, é evidente a rotina ainda mais cansativa. São corriqueiras as histórias de contágio pela doença, de superação de sintomas ou de perda de amigos e parentes.

Historicamente, eles se desdobram entre hospitais para dar conta do orçamento. Agora, é a cobertura das escalas que faz gente sair de um hospital seis da manhã, depois da noite de plantão, e entrar em outro.

Nem assim, é suficiente. No elevador, a conversa da enfermagem revela situação, em unidade de saúde não precisada, onde o plantão de enfermaria foi tocado com 26 pacientes para três técnicos de enfermagem. É surreal.

O fim da vida, que chegou para mais de 3,5 mil pessoas em Mato Grosso do Sul carregado pelo coronavírus, é citado aqui e ali. “Acabou de morrer um paciente”, conta a profissional sobre as notícias vindas do CTI dedicado à covid.

Trabalhador na saúde também adoece. Pior, também vê os seus precisarem do hospital e, aí, passam a sentir dois impactos, na seara profissional e na pessoal.

Enquanto frequentamos diariamente o hospital, vimos a batalha da funcionária cujo marido foi literalmente atropelado por um veículo, enquanto estava de motocicleta, fazendo entregas.

Precisou de cirurgia ortopédica de emergência, mas levou quase uma semana para conseguir fazer. Todo dia, contava a mulher, era preparado para o procedimento, fazia o jejum, porém chegava um paciente mais grave e passava à frente na fila.

O caso dela ilustra de forma cabal o apelo pelo distanciamento social, feito há um ano repetidamente a quem não tem necessidade de estar fora de casa.

Se isso fosse cumprido, as vagas para tratar acidentados não estariam em geral todas ocupadas, e não haveria espera para cirurgias emergenciais. A crise seria um pouco menos pior.

Enquanto escrevo esse texto,  a estatística mostra 30 mortes em 24 horas na conta da pandemia. Ao mesmo tempo, as forças de segurança e, como tem sido comum, na noite de sábado flagraram festas clandestinas lotadas de jovens que, com certeza, se pisaram em um hospital nos últimos meses, não abriram os olhos nem os ouvidos. Muito menos a sensibilidade.

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