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Capital

“Vejo como racismo”, diz pesquisadora sobre agressão de menina negra em escola

Caso foi registrado como “agressão” e segue sob investigação policial para identificar elementos de racismo

Por Mylena Fraiha | 12/03/2024 19:12
Eugenia Portela durante palestra (Foto: Reprodução/Instagram)
Eugenia Portela durante palestra (Foto: Reprodução/Instagram)

"Eu vejo isso como um crime de racismo, não vejo outra explicação", comenta Eugenia Portela, coordenadora do Neab (Núcleo de Estudos Afro-brasileiros) e docente da Disciplina de Educação para as relações étnico-raciais da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), sobre o caso de agressão a uma menina negra de 4 anos, na Escola Municipal Professora Iracema de Souza Mendonça, em Campo Grande.

A situação, registrada na manhã de ontem (11) na escola, resultou no registro de boletins de ocorrência na DEPCA (Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente), feitos por servidores da unidade de ensino e pela família da garotinha.

Os pais dela alegam que a filha foi vítima racismo, embora o pai do menino envolvido alegue ter invadido a escola porque ficou nervoso ao ver a colega abraçando o filho, argumentando que ele "não gosta de toque físico".

Nesta terça-feira (12), a Polícia Civil afirmou, em nota, que até o momento presente da investigação, “não surgiu qualquer indício de racismo”.

Entretanto, conforme enfatiza a professora Eugenia Portela, o racismo nem sempre é explícito e está cercado de "nuances", especialmente dentro do contexto brasileiro. "Vamos colocar essa situação de forma inversa. E se fosse um homem negro que tivesse agredido uma criança branca? O que teria acontecido com esse homem negro? Mesmo sem fazer nada, muitos homens negros são fichados, algemados e levados pela polícia. Os negros são vistos como algozes, nunca como vítimas", comenta Eugenia.

Durante entrevista ao Campo Grande News, foi mencionado que o agressor possui familiares negros com certo grau de proximidade. Entretanto, Eugenia ressalta que o racismo pode existir mesmo que uma pessoa tenha relações com diferentes etnias e raças.

"Algumas pessoas pensam que não são racistas só porque têm parentes e amigos negros. E não é assim. Para uma pessoa negra que enfrenta isso a vida toda, isso nos choca. Eu vivi algo semelhante, na idade dela, dentro de uma igreja. Então isso é inadmissível. Nenhuma criança deveria ser agredida. Mas, esse caso tem um significado diferenciado para nós que já sofremos racismo", relata Eugenia.

Para Eugenia, o caso revela dois problemas enfrentados pelas escolas brasileiras, especialmente as de Mato Grosso do Sul. Um deles é a falta de segurança nas instituições de ensino. "Observamos que as crianças não estão devidamente protegidas no ambiente escolar. Este pai desconsiderou a autoridade da diretora da escola e ignorou a norma estabelecida para entrada na instituição. Imagine se todos os pais e mães agissem dessa forma, apenas para impor suas preferências para o filho".

A professora da UFMS, que também é pesquisadora na área da educação e questões étnico-raciais, menciona também a falta de preparo na hora de reconhecer casos de racismo, especialmente nas delegacias.

"Neste ano, a Secretaria de Direitos Humanos realizou uma formação destinada aos agentes da segurança pública, com o objetivo de capacitá-los a identificar e considerar a questão racial nos casos. Ainda há uma ausência dessa preocupação, de capacitar esses servidores públicos para identificar as nuances desse racismo estrutural e institucional. E isso é complexo, porque, como a pesquisadora Cida [Bento] pontua, há um pacto da branquitude, que faz com que os espaços de poder sejam ocupados por homens brancos. E essa discussão sobre o racismo, frequentemente, é ignorada", explica Eugenia.

De acordo com a família da garotinha, Lione Balta Cardozo, o caso ainda não foi classificado como racismo, uma vez que o pai do menino não proferiu explicitamente uma frase racista contra a vítima. Até o momento, o incidente foi apenas registrado como agressão. “Ele não falou e não proferiu nada que indicasse a questão do racismo. Apesar do vídeo, apesar da revolta, não tínhamos como acusá-lo, de forma direta, de racismo. Então, estamos dependendo do delegado fazer essa análise e dar essa devolutiva”.

Racismo estrutural - De acordo com Eugenia, o racismo estrutural refere-se a um sistema complexo e arraigado de discriminação racial que permeia todas as instituições e estruturas sociais de uma sociedade. "Se você junta pessoas pretas e pardas, temos 60% da população brasileira considerada negra. Só que essa desigualdade também está nos espaços de poder. Se você olha para o STF, para a Assembleia Legislativa, quantas pessoas pretas e pardas você vê? Às vezes, uma ou duas".

Ela destaca que no Brasil, o racismo estrutural tem suas particularidades devido ao contexto histórico da escravidão e ao processo de embranquecimento da população brasileira por meio da miscigenação.

Os Estados Unidos e a África do Sul passaram por um apartheid, muito violento de forma evidente. Só que no Brasil, houve a miscigenação e o processo de embranquecimento da população. Então foi construído um senso comum de que lidamos bem com essa miscigenação, mas isso é um mito. Porque quando você vê quem são a maior parte das pessoas presas, as pessoas mortas pela polícia, as pessoas que têm os menores salários e trabalhos precarizados, a maioria é negra", relata.

A pesquisadora da UFMS também aponta que o racismo estrutural possui uma relação direta com a construção da branquitude, que se considera superior de forma inconsciente. "A construção da branquitude, como raça superior, e a marginalização de tudo o que não é branco geraram o racismo estrutural. Esse fenômeno tem suas raízes desde a época da escravidão e persiste até os dias atuais, pois a abolição não previu uma integração efetiva dos negros na sociedade."

Antirracismo - De acordo com Eugenia, a discussão sobre o racismo tem avançado nas escolas brasileiras. Entretanto, também ressalta que a discussão antirracista precisa ser ampliada para outras instituições, especialmente nas de segurança pública.

“Por muito tempo, não tivemos gestores, professores e diretores capacitados para discutir o racismo. Hoje, as pessoas estão compreendendo mais e denunciando casos de racismo e assédio. Essa discussão está progredindo na sociedade e nas escolas. No entanto, é crucial avaliar como essa discussão está sendo conduzida nas delegacias".

Para Eugenia, a educação antirracista, as políticas de ação afirmativa e a representatividade em espaços de poder também são medidas importantes para combater a desigualdade racial.

Sobre a repercussão dos casos de agressão nas redes, Eugenia defende que não haja mais violência. Em alguns comentários, internautas sugeriram agressão física como uma forma de “correção” ao homem que foi violento com a criança.

"As pessoas ficam tão indignadas que começam a falar absurdos nas redes sociais. É claro que não é correto culpar apenas a pessoa que cometeu essa violência, afinal, ela é fruto da sociedade. Imagina se todas as pessoas que sofrem racismo resolvessem se vingar com as próprias mãos, aí viraria um campo de guerra", defende a pesquisadora.

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