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Cidades

Preconceito ainda condena índios ao limbo do mercado de trabalho

Medo do preconceito tem obrigado indígenas a 'camuflarem' suas origens para conseguir emprego e mesmo 'disfarçados', em geral, índios só conquistam vagas mal remuneradas

Luana Rodrigues | 10/05/2017 13:08
Técnica de enfermagem pronta para o trabalho. (Foto: Marcos Ermínio)
Técnica de enfermagem pronta para o trabalho. (Foto: Marcos Ermínio)

Há oito meses, a índia-terena Nayara Soares Antônio, de 25 anos, acorda cedo, coloca roupa e sapato confortáveis e sai de casa na tentativa de ganhar a vida. A rotina é bem parecida com a de quem tem emprego, mas a jovem, formada em técnica de enfermagem, peleja por uma vaga. E, apesar de já ter entregue mais de 50 currículos e participado de 15 entrevistas, não consegue um trabalho.

Realidade parecida vivem muito indígenas em Mato Grosso do Sul, que é o segundo Estado em população indígena do Brasil. Escravizados na época do descobrimento, os índios resistiam ao trabalho e por isso eram considerados ‘preguiçosos’, ‘insolentes’, ‘selvagens’.

Eco desses adjetivos, que têm mais de 500 anos, o preconceito faz parte do dia a dia dos índios e interfere diretamente na procura deles por emprego no mercado de trabalho formal.

Ainda que a discriminação configure crime, poucos indígenas conseguem uma vaga. Tanto que nenhum órgão fiscalizador do trabalho ou a Funai (Fundação Nacional do Índio) sabem ao certo quantos estão empregados no Estado. Apesar do limbo oficial, a realidade pode ser facilmente encontrada nas comunidades indígenas, que tem maioria dos moradores desempregada ou com subempregos.

Vitória Cristine Soares Antônio, 16 anos, também busca uma oportunidade num primeiro emprego. (Foto: Marcos Ermínio)
Vitória Cristine Soares Antônio, 16 anos, também busca uma oportunidade num primeiro emprego. (Foto: Marcos Ermínio)

“Primeiro era porque eu não tinha a carteirinha do conselho, agora eles dizem que é preciso ter experiência comprovada em carteira. Mas, como vou ter experiência se não me dão uma oportunidade?”, questiona a técnica de enfermagem.

Um pouco mais jovem, mas dividindo a mesma esperança, a irmã de Nayara, Vitória Cristine Soares Antônio, 16 anos, também busca uma oportunidade de primeiro emprego.

Apesar dos cursos de informática e marketing pessoal, não apareceu serviço para a adolescente, que já pensa nas dificuldades em conseguir trabalho depois de formada na universidade. “Acho que vai ser bem difícil, eles pensam que não somos capazes”, acredita a moça, que pretende cursar Direito.

As irmãs moram na aldeia urbana Marçal de Souza, em Campo Grande. Segundo o cacique Daniel da Silva, não são as únicas a sofrer com a discriminação.

Temos muitos pais e mães de família sem trabalho e também muito jovens, que acabam caindo no caminho errado por não ter o que fazer, porque muita gente pensa que não conseguimos trabalhar”, diz.

Em geral, indígenas só conseguem disputar vagas mal remuneradas, de trabalho braçal. (Foto: Marcos Ermínio)
Em geral, indígenas só conseguem disputar vagas mal remuneradas, de trabalho braçal. (Foto: Marcos Ermínio)

Camuflados - O medo do preconceito tem obrigado índios a 'camuflarem' suas origens para conseguir emprego. E mesmo assim, 'disfarçados', os indígenas em geral só conseguem conquistar vagas mal remuneradas, que exigem muito esforço, que estão à disposição no mercado de trabalho.

No fim das contas, acabam ocupados como pedreiros, boias-frias, carpinteiros ou empregados domésticos.“E a tem que aceitar qualquer coisa, porque se eu não tiver uma opinião, que eu tenho que sustentar minha família, eu vou ficar amarrado”, diz o cacique.

A remuneração desses trabalhadores acompanha esse raciocínio. A média salarial é mínima, de R$ 937 para menos, segundo os indígenas.

Ignorância – Para o índio guarani e coordenador do Observatório dos Direitos Indígenas do Centro-Oeste, Wilson Matos da Silva, a origem do preconceito está ligada à história do Brasil e a uma política de extrema proteção ao indígena.

Wilson Matos da Silva, índio guarani e coordenador do Observatório dos Direitos Indígenas do Centro-Oeste. (Fonte:Isabela Vieira / Agência Brasil)
Wilson Matos da Silva, índio guarani e coordenador do Observatório dos Direitos Indígenas do Centro-Oeste. (Fonte:Isabela Vieira / Agência Brasil)

"Nas escolas, as crianças aprendem que o índio foi substituído pelo negro na escravidão porque ele era preguiçoso. Existe uma imagem central negativa, de acusação, sobre o indígena quando somos tratados como incapaz. Somos vistos como "bugres", infiel e traiçoeiro, deficiente-incapaz, violento-desordeiro e preguiçoso-vagabundo. Continuamos vivendo marginalizados, excluídos e abandonados", diz.

Silva é filho de mãe Terena e pai Guarani, formado em direito, ajudou a fundar a CEAI/OABMS (Comissão especial de Assuntos Indígenas da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional de Mato Grosso do Sul), mas, lembra que também já teve de ser semi-escravo para sobreviver. "Em 1974, comecei a trabalhar em uma destilaria na região da aldeia. Foram 14 longos anos de trabalho sem condições saudáveis", relembra o advogado.

Respeito - Para o advogado, esta realidade só irá mudar com campanhas do governo e órgãos que fiscalizam o trabalho, que mostrem a realidade da cultura e história indígena com respeito. “É preciso que mostrem que nós temos diferenças culturais, mas somos capazes, temos estrutura, intelecto, somos bons advogados, bons engenheiros, médicos, professores, podemos desempenhar qualquer profissão”, diz.

Além disso, Silva acredita que o apoio do Poder Público à inserção dos índios no mercado de trabalho, o fomento à atividade autônoma e o estímulo a atividades empreendedoras individuais dos índios e das comunidades indígenas também são importantes.

"A prefeitura e o Governo do Estado podem e devem nos auxiliar, para que nós os índios possamos buscar a qualificação profissional, e a inserção da mão-de-obra indígena no mercado de trabalho douradense, que nos proporcionará alto estima, dignidade e inclusão de fato, na construção de uma sociedade mais Justa e mais Humana", considera.

Coordigualdade - Desde 2002, o MPT (Ministério Público do Trabalho) tem a Coordigualdade (Coordenadoria Nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho), que tem como objetivo definir estratégias coordenadas e integradas de política de atuação institucional no combate à exclusão social e à discriminação no trabalho.

As principais áreas de atuação da Coordenadoria são o combate à discriminação a trabalhadores por raça, cor ou credo,  e o fomento à inclusão nos ambientes de trabalho da pessoa com deficiência ou reabilitada e na proteção da intimidade dos trabalhadores, além do incentivo a troca de experiências e discussões sobre o tema.

Trabalho 'na roça' acaba sendo principal caminho para indígenas. (Foto: Marcos Ermínio)
Trabalho 'na roça' acaba sendo principal caminho para indígenas. (Foto: Marcos Ermínio)
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