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Arquitetura

Bicicleta Royal 1954 é relíquia de Francisco, com placa registrada na prefeitura

A bicicleta é a ligação de Francisco com o passado, nela o marceneiro atravessava a cidade para trabalhar todas as manhãs às 5h

Kimberly Teodoro | 29/01/2019 08:43
Companheira de estrada, a bicicleta Royal 1954 de Francisco é motivo de orgulho para o marceneiro (Foto: Kimberly Teodoro)
Companheira de estrada, a bicicleta Royal 1954 de Francisco é motivo de orgulho para o marceneiro (Foto: Kimberly Teodoro)

Do lado de fora, a casa amarela no São Francisco mantém preservada a mesma fachada de quando foi construída há 55 anos. O lado de dentro é abrigo para os 84 anos de história do marceneiro Francisco Nakasone e para a companheira de trabalho de tantos anos que hoje é relíquia de família, a bicicleta Royal 1954, ainda com todas as peças originais e placa de número 175, registrada em Campo Grande, MS.

O meio de transporte, comum na época, é um dos últimos registrados na prefeitura na época em que as bicicletas também precisavam de placa para circular pela cidade, o que faz dela ainda mais especial para o dono, que aposta ser impossível encontrar outras “magrelas” tão bem preservadas assim.

Descendente de japoneses, nascido em terras sul-mato-grossenses, Francisco diz não ter fotografias do passado, dias em que havia muito trabalho e pouco tempo para cliques, tão valorizados hoje. O registro da própria história fica por conta das memórias, narradas com a lucidez e a sabedoria de quem viu a cidade crescer e se transformar ao redor, enquanto cultivava raízes no solo escolhido pelos pais ainda no século passado como morada, na esperança de uma vida melhor.

Com poucos recursos, Francisco conta que quase não estudou. Por isso, trabalho é uma palavra que ganhou significado muito cedo e aos 6 anos já ajudava o pai na lavoura de café, perto de Rochedinho, onde morou até pouco antes do casamento aos 23 anos. Antes de aprender a lidar com as ferramentas de marceneiro, profissão que exerceu por mais de 50 anos, Francisco trabalhou nas máquinas de arroz instaladas entre a Rua 13 de Maio e a Avenida Mato Grosso, ao longo de 17 anos.

Francisco viu o bairro crescer e se transformar ao longo de 55 anos morando no mesmo endereço (Foto: Kimberly Teodoro)
Francisco viu o bairro crescer e se transformar ao longo de 55 anos morando no mesmo endereço (Foto: Kimberly Teodoro)

Hoje, Francisco mora em uma das regiões mais valorizadas ao redor do Centro de Campo Grande, mas nem sempre foi assim. “Antes do asfalto, as pessoas estendiam lonas na rua para secar o arroz, durante muito tempo foi o emprego de muita gente. Essa região era afastada, não tinha recursos, saúde, educação. Quem morava para cá eram os trabalhadores”, conta.

Depois que as máquinas pararam de funcionar, Francisco encontrou na marcenaria um jeito de continuar sustentando a família, mais ou menos a mesma época em que veio a bicicleta, que valia “mais que carro” por aqui, na década de 1950, e que depois da “aposentadoria” ganhou lugar de destaque pendurada na garagem de casa, bem ao lado das ferramentas de trabalho que hoje pertencem ao filho.

“É uma bicicleta Royal, que quer dizer ‘real’ em inglês e é importada. Valia o preço de duas bicicletas nacionais quando eu comprei, mas era a melhor e nunca me deixou na mão”, relembra Francisco, que diz já ter recebido propostas pela velha companheira, mas que não tem a intenção de se desfazer dela.

A Royal 1954 é a ligação de Francisco com o passado. Era nela que o marceneiro atravessava a cidade para trabalhar todas as manhãs às 5h, fosse para visitar clientes ou fazer a manutenção do Hotel Campo Grande, “o melhor hotel que essa cidade já teve”, segundo ele.

O modelo é importado, Francisco calcula ter custado o preço de duas bicicletas nacionais (Foto: Kimberly Teodoro)
O modelo é importado, Francisco calcula ter custado o preço de duas bicicletas nacionais (Foto: Kimberly Teodoro)
A placa de número 175 é uma das poucas que ainda restam da época em que as "magrelas" também precisavam de registro na prefeitura (Foto: Kimberly Teodoro)
A placa de número 175 é uma das poucas que ainda restam da época em que as "magrelas" também precisavam de registro na prefeitura (Foto: Kimberly Teodoro)

Também é aos anos pedalando pela cidade que Francisco atribui a longevidade. Ativo até hoje, ele ainda dirige e vai sozinho para a hidroginástica, atividade que pratica há 20 anos, quando o trânsito da cidade ficou perigoso para quem circula em 2 rodas e amiga de tantos anos foi aposentada.

Francisco e a esposa Dália tiveram 4 filhos homens e 3 mulheres, todos criados no endereço em que vivem até hoje. Viúvo há quase 2 anos, foram mais de 50 de companheirismo, dividindo a rotina do dia a dia e a luta para dar uma vida decente à família. “Meu pai não dividiu os bens entre os filhos, a casa ficou pronta em 30 dias, mas levei 5 anos pagando R$ 500 todos os meses para o banco, com juros, certinho até ficar livre da dívida”, conta.

A casa amarela preserva a mesma fachada de quando foi construída e é abrigo para a história de Francisco (Foto: Kimberly Teodoro)
A casa amarela preserva a mesma fachada de quando foi construída e é abrigo para a história de Francisco (Foto: Kimberly Teodoro)

O exemplo para uma vida de dedicação à família veio dos próprios pais, Francisco é o 2º filho mais velho do casal Gueshin Nakasone e Kana Nakasone, entre os 7 filhos do casal, a responsabilidade de guardar a trajetória dos pais é dele. “Hoje, as pessoas que conhecem as histórias das primeiras famílias de japoneses são poucas e não têm escrito, a maioria acaba se perdendo”, lamenta. “Meu pai era tradicional, nunca falou das dificuldades e sofrimentos da vida antes de chegar aqui, o que eu sei é que quando ele chegou aqui não falava a língua e nem conhecia ninguém, mas a união da colônia sempre foi muito forte e os japoneses se ajudavam. Tudo o que temos hoje foi construído aos poucos, conquistado com trabalho duro”.

Para ele, a lembrança dos pais é clara. Gueshin era um homem tradicional, trabalhador e que valorizava a disciplina. Nunca foi de reclamar ou falar da terra natal com saudade. A vida que escolheu construir foi aqui. Já Kana era o pilar da família. Dona de casa, a responsabilidade de administrar os filhos e a casa sempre foi dela.

“Era uma mulher forte, chegou aqui sem falar nada de português, não sabia como pedir um copo de água ou comprar leite no mercado quando precisava, foi ela quem sentiu mais saudade de casa. Mas aprendeu rápido e ficou muito boa em identificar as pessoas, ela conhecia todo mundo e na hora de contratar gente para trabalhar na lavoura, o que contava era a opinião dela. O maior sonho dela era voltar ao Japão, visitar uma cunhada que ficou lá e ver Okinawa de novo, em 1982 consegui realizar esse sonho e ela foi com um tio meu anos antes de morrer, foram 2 anos pagando a viagem, mas cada parcela valeu a pena”, relembra.

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