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Comportamento

Boteco no Santo Amaro guarda história de 25 amigos que fugiram a pé do Paraguai

Aos 81 anos, Justo é um dos poucos vivos do grupo que em 1957 sobreviveu a selva para escapar da ditadura

Thaís Pimenta | 28/03/2018 06:10
Justo ainda guarda as fotos do jornal que contou como foi a travessia do Paraguai para o Brasil. (foto: Roberto Higa)
Justo ainda guarda as fotos do jornal que contou como foi a travessia do Paraguai para o Brasil. (foto: Roberto Higa)

Quem vê Justo Cuellar atendendo clientes no seu botequinho, no Bairro Santo Amaro, não imagina que ele é um ilustre personagem de Mato Grosso do Sul, que em tempos do regime ditatorial de Alfredo Stroessner, veio a pé do Paraguai, atravessando regiões de selva e enfrentando a fome e a sede. Com sorriso no rosto, a história de sobrevivência ao lado de 24 amigos agora é só lembrança do refugiado da ditadura nos anos 50.

Justo tinha apenas 18 anos, largou o curso de Contabilidade e foi instigado por um familiar para participar de um grupo secreto, coordenado para derrubar o sistema de governo ditatorial no país em que nasceu, o Paraguai. "Alfredo Stroessner era o ditador e nós queríamos derrubá-lo do poder. Então, eu ingressei na missão de angariar amigos para participar do grupo secreto dentro do Exército paraguaio", diz.  

Depois de se alistar, diz que conseguiu convencer 30 pessoas a reforçarem a resistência. "Precisava primeiro sondar ele, puxar papo sobre coisas recentes até chegar a seu íntimo, só depois eu propunha a participação dos amigos no grupo. Demandava tempo demais". 

O levante foi adiado por três vezes até que o esquema contrário ao governo foi descoberto e, pouco a pouco, Justo viu seus amigos e familiares sumindo, indo para o centro de tortura.

Ele não esconde as lágrimas ao lembrar de seu passado. (foto: Roberto Higa)
Ele não esconde as lágrimas ao lembrar de seu passado. (foto: Roberto Higa)

O senhor de olhos já pequenos diz que pensou então pela primeira vez em abandonar o país. "Decidi que fugiria, sozinho, depois de determinado dia no trabalho como militar do Exército. Mas pra eu ir embora, precisava me despedir da minha companheira, que era inclusive uma mulher muito fiel à causa. Ao chegar na casa dela, fui convencido de que não deveria fugir de repente".

Ao voltar para o regimento no dia seguinte, Justo foi preso e torturado. Passou por sessões de choque elétrico e teve seu corpo mergulhado em uma bacia de água eletrizada na intenção de que ele entregasse outros amigos que ainda estavam a salvo.

Depois, foi enviado para trabalhar quase que como escravo em uma espécie de campo de concentração do Chaco Paraguaio, para abrir estrada até a fronteira boliviana. "Como se fosse um castigo. Não tínhamos previsão de largar esse trabalho, estávamos fadados a morrer trabalhando, em condições sub-humanas. Trabalhamos de sol a sol e debaixo de chuva, durante dia e noite".

Senhor em seu botequinho, que tem de tudo um pouco. (foto: Roberto Higa)
Senhor em seu botequinho, que tem de tudo um pouco. (foto: Roberto Higa)

Depois de 1 ano nessa situação, ele e alguns colegas decidiram se rebelar e conseguiram fugir rumo ao Brasil. "Lembro que um tenente disse que tínhamos todo o direito de tentar ir, mas que aquilo era um suicídio porque entraríamos em mata virgem, com escassez de água e calor, e morreríamos sob essas condições".

Justo e mais 24 homens começaram então uma aventura pelo Chaco Paraguaio, região de mata fechada naquela época. "Tínhamos que abrir caminho, era selva mesmo, de um jeito que eu acho que vocês jovens nunca viram".

Nem a trocas das armas que levavam por mantimentos garantiu a alimentação por muito tempo. Passados alguns dias, a situação ficou crítica e os amigos já não tinham mais o que comer e passavam sede extrema.

Mas quando a morte parecia certa, ele jura tem vivenciado um milagre. "Nós todos começamos a rezar, pedir ajuda para Virgem de Caacupé. Nos olhávamos e estávamos com os olhos profundos, boca seca. Só que durante a oração a graça veio, e eu não estou mentindo, eu vi acontecer, senti na pele: a chuva começou a cair".

"Matou nossa sede. Conseguímos colher algumas caraguatás, são flores que retém água e deu pra encher nossos barris", completa.

Para comer, matavam tartarugas, macacos e até alguns pássaros que atravessavam. "Fazíamos uma fogueira pequena para assar. Mesmo se fosse um pedacinho, a gente repartia ele".

No dia 7 de setembro de 1957, finalmente chegaram em Barranco Branco, município ao lado de Porto Murtinho, sem qualquer documento ou pertences. Uma família acolheu os 25 fugitivos da ditadura, ofereceu estadia e os ajudou a atravessar o rio Paraguai com a balsa que tinham até o lado brasileiro.

Justo revive sua história ao ver  de perto um linotipo original, que fica no prédio do Memorial da Cultura. (foto: Roberto Higa)
Justo revive sua história ao ver de perto um linotipo original, que fica no prédio do Memorial da Cultura. (foto: Roberto Higa)

No dia seguinte, o grupo já estava famoso na região, convidado para contar a história aos jornais "Na época, eu mal entendia português", relembra. Justo guarda até hoje os recortes da matéria publicada em Campo Grande e não esquece de uma pergunta. "Me perguntaram do que eu viveria no Brasil. Eu disse  que seria pedreiro". 

Mas uma proposta do dono do jornal garantiu outro rumo ao paraguaio. Justo aprendeu a usar a máquina de linotipo e virou funcionário da empresa. "Aprendi o português e o funcionamento do linotipo junto. Eu comecei decorando o alfabeto". lembra.

Foram 12 anos como funcionário do Correio do Estado, mais três no Diário da Serra, até que se cansou do mesmo trabalho e se tornou comerciante. "Gosto disso daqui, de ter o meu botequinho", brinca. Num entra e sai de clientes, um bom humor de impressionar e toda a calma do mundo, seo Justo comemora a boa saúde no auge de seus 81 anos. "E com muita história pra contar".

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