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Comportamento

Moradores abrem varanda para servir de café a carreteiro para desconhecidos

Paula Maciulevicius | 07/08/2015 06:34
O lixo fica para fora, pronto para ser levado. E porta adentro é a vez dela conhecer quem sempre passa ali. (Foto: Fernando Antunes)
O lixo fica para fora, pronto para ser levado. E porta adentro é a vez dela conhecer quem sempre passa ali. (Foto: Fernando Antunes)

No bairro Coophatrabalho um compromisso já dura mais de 15 anos. No Vilas Boas, um está para completar os primeiros 12 meses. Metade do tempo em que dona Dirce mora ali, às terças, quintas e aos sábados, a varanda de casa se abre para gente que até então desconhecia. As três décadas vivendo na região a tornaram velha conhecida dos coletores. O lixo fica para fora, embaladinho na rua, pronto para ser levado. E porta adentro é a vez dela conhecer quem sempre passa ali. 

Quando o caminhão da coleta de lixo começa andar pelas ruas próximas, dona Dirce já escuta... O lanche para os cinco coletores que passam no bairro fica a postos e até quando ela não está em casa, a sacolinha com pão e a garrafa de café fica no portão. "É toda terça, quinta e sábado. Hoje é dia deles passarem", avisa a aposentada Dirce Ferreira da Silva, de 71 anos.

No começo a coleta era pela manhã e o primeiro contato partiu deles, ao pedirem água. Da segunda vez em diante, sempre tinha na geladeira uma garrafa congelada. Mas foi quando o serviço mudou de turno e foi para a noite, que ela teve de adaptar o cardápio. "Eu pensei: o que eu vou fazer? Já sei, café e pão", conta. Ela não se recorda bem a época em que começou, mas o compromisso é firme e já se tornou, para ela, uma "obrigação". Não por imposição, mas por já ter entrado na rotina da casa. "Meu marido compra já os pães deles todos os dias da coleta", diz.

Dirce não sabe ao certo porquê começou... Talvez por acreditar que a profissão seja das mais desgastantes. (Foto: Arquivo Pessoal)
Dirce não sabe ao certo porquê começou... Talvez por acreditar que a profissão seja das mais desgastantes. (Foto: Arquivo Pessoal)

Dona Dirce também não sabe ao certo porquê começou... Talvez por acreditar que a profissão seja das mais desgastantes ou uma forma de agradecer quem sempre lhe atendeu bem. Os vizinhos da rua também ajudam e volta e meia tem pizza e bolo incrementado ao cardápio.

E ai deles, os coletores, se quiserem comer na calçada. "No começo eles ficaram meio assim... Eu disse não, é para comer aqui dentro". O diálogo entre eles é pequeno, mas a confiança é gigante. Dona Dirce diz que apesar de gostar de uma conversa, eles é que são tímidos. No fim do rápido lanche, são os coletores que trancam o cadeado.

A rotatividade não é das maiores, mas na coleta as mudanças acontecem. Maicon Camargo, de 24 anos, é o motorista do caminhão que para à frente da casa de Dirce. Há 2 anos e meio dirigindo pelas ruas, ele já ouvia a história do lanche antes mesmo de ir para o batente. "Meu irmão trabalhou nesse setor e já tinha me falado", conta.

Para o motorista, que fala em nome dos cinco, o portão aberto é um gesto além do que a comida a ser degustada. "É muito legal, porque a gente vê que o pessoal reconhece o nosso trabalho. Eu imagino que ela é uma pessoa muito boa", resume. 

Brincalhão, o apelido de Luis Rogério é Luan Santana. (Foto: Fernando Antunes)
Brincalhão, o apelido de Luis Rogério é Luan Santana. (Foto: Fernando Antunes)
Paraguai, o motorista da equipe fala da "desconfiança" à primeira vista. (Foto: Fernando Antunes)
Paraguai, o motorista da equipe fala da "desconfiança" à primeira vista. (Foto: Fernando Antunes)

No bairro Vilas Boas, os portões se abrem desde o final do ano passado. O lanche é na garagem, com mesa e banquinhos prontos para oferecer assento a quem tanto fica de pé. Na residência, o costume é o mesmo de dona Dirce, se os donos viajam, também fica lanchinho na porta de casa.

O dono prefere não se identificar porque acredita que não faz nada de grandioso. "É uma profissão como outra qualquer. É algo necessário, mas é complicado só porque mexe com o lixo?" indaga. Em casa ele já adquiriu o hábito de comprar frios do dia para servir fresquinho. Os coletores do bairro, na última quarta-feira, comeram chipa, mas já saiu até carreteiro.

"O que falta mesmo é churrasco", brincam Paraguai, o motorista, e "Luan Santana", o coletor. De início, eles também ficaram um tanto quanto desconfiados...

"Ele que chegou chamando, nós ficamos olhando... Ele disse que a gente podia entrar... É difícil isso acontecer", descreve o motorista Ilário Ramon Freitas de Flecha, de 55 anos, conhecido como "Paraguai".

Brincalhão, o apelido de Luis Rogério Conceição dos Santos, de 31 anos, é Luan Santana, pelos "olhinhos vesgos" e também pelo cantar. O mais animado da turma de quatro ele diz que o primeiro dia que viu o portão aberto e a comida na mesa... "No primeiro dia mesmo eu estava de férias. Depois eles pararam o caminhão e eu não acreditei... Fiquei perguntando, mas agora é sagrado, toda quarta-feira", narra.

Na opinião dele a dificuldade das pessoas em abrir a casa, não só para os coletores, como para qualquer outra profissão, é do que o outro lado está querendo. "As pessoas acham que a gente vai pedir alguma coisa ou que vai pegar, é muita desconfiança", diz.

Entre eles saiu até a brincadeira de que talvez estivessem diante de um dos sócios da empresa coletora. O tempo mostrou que não, o profissional liberal abre a casa de coração mesmo.

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