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Comportamento

Quando o leitor preferido morreu, a saudade ficou nas palavras não lidas

Paula Maciulevicius | 12/02/2016 06:23
Seu Jurandir, o avô sistemático, digno de virar personagem de filme e o leitor preferido da neta. (Foto: Arquivo Pessoal)
Seu Jurandir, o avô sistemático, digno de virar personagem de filme e o leitor preferido da neta. (Foto: Arquivo Pessoal)

"Meu leitor se mudou. Por quase um mês fiquei digerindo esse texto. Fiquei pensando se ele precisava mesmo existir. Afinal, o que é de um texto sem leitor? E meu leitor se mudou. Se mudou para um lugar que eu acredito que ele possa ter lido o texto antes mesmo dele sair da minha cabeça e para um lugar que ele nem acreditava que existia".

Durante anos Laís Camargo só queria escrever, independentemente da profissão, e sempre teve para quem mandar os textos. Do outro lado, a pessoa respondia com os elogios mais elaborados ou esculachava com as críticas mais fugazes. O mundo inteiro podia ler os textos da neta, mas para Laís só importava mesmo a opinião dele: do avô.

Seu Jurandir Camargo era digno de virar personagem de filme. Jornalista, professora e escritora, não tem amigo de Laís que nunca tenha ouvido ela falar sobre ele - o famoso militar e bancário aposentado que morava na praia e tinha uma sistemática infalível de vida, ensinada a ela com maestria.

A rotina, mesmo vivida a quilômetros de distância, a neta sabe de cor. 

"Todos os dias acordava cedo, dava comida aos passarinhos na sacada, fazia um mingau de aveia e frutas, saía para caminhar na praia. Voltava impecavelmente no mesmo horário, almoçava no mesmo lugar, comia 300g de comida ou menos, voltava, tirava um cochilo, conversava no Skype com os amigos.

Lia Piauí, Folha de São Paulo, algum livro do momento, fazia recortes de seus preferidos e uma vez por mês me enviava por correio uma caixa com seus textos e livros favoritos, selecionadíssimos. Eu tinha uma semana para ler tudo e responder via Skype ou e-mail o que tinha achado. Isso acabou."

Seu Jurandir sempre morou longe. Avô e neta se viam, pessoalmente, uma vez por ano. Mas ele era antenado e os dois trocavam textos via Skype, Facebook e WhatsApp. No passado, era a base de cartas que se falavam, quando chegavam ao endereço de Campo Grande os "pacotões do mês", uma caixinha cheia de recortes de jornais e livros que ele selecionava para a neta. Laís tinha, como obrigação, dar contrapartida de tudo. Dizer o que achou de cada um. 

O avô era das letras e também das imagens. Tinha um irmão jornalista e escritor e trabalhou como fotógrafo em jornal, mas era como funcionário de banco que ele ganhou a vida, fora os anos no serviço militar. Adorava viajar, na bagagem da vida, levava as lições aprendidas no Caminho de Santiago da Compostela, junto das aulas de francês. Aprender algo novo, sempre, era o combustível que guiava os passos de seu Jurandir.

"Apesar de toda bagagem, eu não o conseguia chamá-lo de senhor, era sempre de você, porque não tinha isso de ser superior porque ele era mais velho. Ele falava o que achava e pronto. Eu tinha liberdade para concordar e discordar sempre", conta.

Única neta, Laís viveu 25 anos ao lado de um avô que soube passar a ela uma organização invejável, além do gosto pela leitura. Sistemática como seu Jurandir, Laís narra que pelo exemplo consegue, desde os 13 anos, manter uma poupança e pensar sempre cinco anos à frente. A viagem futura, a entrada da casa. Tanto neta quanto avô não sabiam fazer nada sem antecedência, nem se despedir.

A "sinceridade inteligente" do avô, era o que a neta mais admirava. Um senhor que nunca opinava da boca para fora. Era tudo bem pensado e se a réplica viesse com bons argumentos, ele até ponderava.

A aposentadoria já havia chegado ao seu Jurandir que, no alto dos seus 77 anos, tinha como maior ocupação dar banana - todas as manhãs - para os passarinhos que vinham até a sacada do apartamento, no mesmo horário. Nos últimos tempos, ele também andava meio reflexivo sobre a vida. Oposto da neta, ele era agnóstico e acreditava em poucas coisas espirituais. "Mas me ensinou sempre a questionar, a não aceitar nada mastigado", descreve Laís.

Seu Jurandir se foi numa partida digna de filme, em janeiro deste ano. Havia três dias que os netos estavam lá, curtindo sol e mar do lado do avô virtual e sistemático. Ele saiu para a caminhada e não voltou. Aos olhos da neta, foi uma sacanagem do tamanho do mundo, ao mesmo tempo em que foi exatamente do jeito que tinha de ser, arquitetado pelo destino de uma forma maestral.

Laís estava de férias na cas dele. Na noite anterior, Jurandir reclamou de dores no estômago, na manhã seguinte, saiu para caminhar. Já era início da tarde e ele ainda não havia voltado. Tendo horário para tudo, os netos estranharam. A família passou a procurar em hospitais e delegacias. Até que o neto, irmão de Laís, ficou sabendo de um corpo não identificado, encontrado na frente de um clube onde Jurandir caminhava. Aparentemente, ele teve uma parada cardíaca e caiu no mar. A causa da morte foi afogamento, mas alguma coisa antecedeu e deu motivo, seu Jurandir sabia nadar.

Sobre a morte, nas palavras da neta, foi triste, mas foi perfeito. Ninguém merece morrer sozinho e ele estava do lado de quem ele sempre dividiu a vida e pode também dividir a partida. 

E o que ficou de quem partiu? As boas lembranças e os ensinamentos maravilhosos, mesmo não sendo passados didaticamente, Laís vivenciou esses anos todos só observando como o avô levava a vida. Espírita, ela não encara mortes como tristeza, mas admite a bruta saudade e a lembrança de como foi faz doer ainda mais. 

"É o ciclo natural da vida, ia acontecer uma hora ou outra, assim como vai acontecer com todos nós. Ele sempre falava em aproveitar os dias um a um, mas não romantizava a morte em si. Ele era prático", resume.  

"Doce morrer no mar? Achei amargo. Achei sacanagem. Achei irônico e bonito. Achei cedo demais. Achei que ia encarar melhor. Achei que poderia escrever contando pra ele como foi – mas perdi as palavras. Perdi o porquê de escreve-las. Perdi meu leitor. Perdi meu leitor favorito. Para mim isso tem todo o peso do mundo, para ele isso é pura leveza – essa é a vantagem de não acreditar na vida após a morte – eu fico aqui, romantizando uma rasteira do destino no meio das férias – ele fica lá, rindo de mim – como fazia sempre que eu tentava argumentar poeticamente sobre os outros mundos. Pode rir, vô. Eu vou continuar escrevendo como se você pudesse ler – e espero até resposta, ein!"

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