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Comportamento

Sem atrasos ou adiantamentos, relojoeiro mais antigo da cidade completa 86 anos

Paula Maciulevicius | 16/10/2013 06:12
Sem óculos, aos 86 anos, ele monta e desmonta os relógios enxergando as peças com o coração. (Fotos: Cleber Gellio)
Sem óculos, aos 86 anos, ele monta e desmonta os relógios enxergando as peças com o coração. (Fotos: Cleber Gellio)

Tic tac. Tic tac. Tic Tac. Nas paredes amarelas para onde leva a portinha da esquina das ruas Antônio Maria Coelho e José Antônio, estão os instrumentos que orquestram a sinfonia do ambiente. De parede, pulso, corda, cuco, ou automático. É pelo tictaquear dos ponteiros a paixão do relojoeiro mais antigo da cidade. Tanto de idade, como de profissão. Sem atrasos ou adiantamentos, Jorge Fraiha completa 86 anos nesta semana e 67 deles dedicados a consertar minutos e segundos.

“Quando você começa a namorar, não fica apaixonado? Não quer ver toda hora? Não fica lembrando? Minha paixão são os relógios e olha lá embaixo pra você ver”. Pela janela dá para ver o outro amor, o Fusca vermelho ano 75, todo reformado.

“Para tocar pilha é meia dúzia. “Tem lugar que é R$ 10, mas se quiser eu indico um de R$ 15 pra você”. É assim que ele recebe cliente no pequeno comércio de consertos que tem a mesma cara há quase 20 anos. “Ué reportagem? Eu pensei era que você fosse trazer um monte de relógio para eu consertar” e cai na risada.

De corda, parede, pulso e cuco. É por essa portinha na Antônio Maria Coelho que se adentra ao mundo dos relógios.
De corda, parede, pulso e cuco. É por essa portinha na Antônio Maria Coelho que se adentra ao mundo dos relógios.

‘Seo’ Jorge é figura que o tempo construiu. A parede repleta de horas e segundos tem de tudo quanto é tipo de marcador de horas. Volta e meia ele ensina como funcionam. “Isso aí é um relógio simples, de pouca peça, são os dois pesos da corrente que regulam o relógio. Tem que descer para adiantar”, explica.

Corumbaense só mesmo na certidão de nascimento. Filho de libaneses, ele se considera campo-grandense. “Ninguém me tira isso. Sou daqui de coração”. O ponto de trabalho sempre foi ali. Quando não na lojinha da esquina, na casa ao lado, onde mora até hoje.

O espaço é relativamente pequeno, entre tantos ponteiros. O ofício é desenvolvido numa mesa de madeira já gasta pelo tempo. A iluminação é fraca e precisa da mãozinha de uma luminária. O impressionante é ver que aos 86 anos ele dispensa óculos. Enxerga as peças com o coração.

“Uso essa lente só, mas tem que ser de perto, bem de pertinho”, demonstra. O ‘cabelo’, por exemplo, a menor e mais importante peça do maquinário de um relógio é um círculo que a olho leigo passaria despercebido. Eu mesma pensei que fosse sujeira.

“Só não coloca a mão menina. Se derrubar isso, eu te dou um pito”, alertou. Só olhei de longe.

O tic tac não para um segundo no comércio de quem passou 60 anos da vida atrás dos relógios.
O tic tac não para um segundo no comércio de quem passou 60 anos da vida atrás dos relógios.

Ele diz que não gosta de aparecer, mas a paixão pelos relógios é dividida com o mesmo gosto que tem pelos 90 minutos de uma partida. Na década de 70 foi juiz e chegou a ser técnico do Comercial.

“Hoje jogador não joga bola não. Eu sou ruim, sou bravo. É que antigamente, senão jogasse bola, ia embora. Eu rasgava filha de jogador no vestiário. Você é moleque e no meu time não joga”, recorda.

Pela idade ele bem que já podia ter se aposentado. Mas responde de supetão quando questionada essa possibilidade. “Só hoje de manhã eu ganhei R$ 30. Aonde eu vou arrumar isso? E outra, vou ficar em casa lavando roupa? Chão?” Nem precisa responder que a gente já entendeu que não.

O aprendizado veio com o relojoeiro Eros Fachini, um italiano que lhe ensinou a magia das horas quando Jorge tinha então 19 anos. Trabalho que dura até hoje, das 7h da manhã às 5h da tarde.

Tem intervalo no almoço e exceção em dia de jogo da seleção. Mas cliente que bater na casa ao lado, tira ‘seo’ Jorge do almoço para o relógio fácil fácil. A televisão que antes ficava no quarto teve de vir para a sala. Por vezes a mulher de relojoeiro pegou cliente acomodado na cama, assistindo televisão.

Na casa, ele já perdeu as contas de quantos relógios guarda. “Deve ter uns 30, 40, 50... Tem relógio de mais de 15 anos que o dono não vem pegar. Quando vem eu entrego, não interessa o ano”.
Os ponteiros que não lhe saem da mente são justamente os primeiros que usou no pulso. Um modelo Tissot 47 comprado no final da década de 60. “Quando comecei a trabalhar, tinha que ter um relógio. Paguei 100 cruzeiros na época, ia pagando 10 por mês. Hoje eu estava pegando nele, é niquelado, usei por muitos e muitos anos ele”.

Os fregueses, ele garante, são bem selecionados. Não tem estúpido, bravo e nem mal educado. Depois do que ele acredita ser propaganda dos consertos, ele já antecipa a responsabilidade. “Se amanhã minha loja formar fila, você é a culpada”, brinca.

Os 86 anos chegaram e muito bem. Para fechar pergunto a quem sempre viveu do tempo, se os ponteiros foram generosos a ele. “Não falo que vou chegar aos 100 porque não acredito. Acho que até uns 92, 94 eu chego. Eu não faço a vontade de ninguém, eu faço a minha”.

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