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A dimensão coletiva da proteção de dados pessoais: novos desafios e respostas

João Vitor Tissot (*) | 27/07/2023 13:30

Sendo a informação o principal vetor de transformação da atualidade, tem-se como natural o contínuo crescimento da complexidade, volume e eficiência do fluxo de dados. Em menos de 350 anos, a quantidade de bits existentes tem potencial para superar o número de átomos e, em aproximadamente 500 anos, metade da massa da Terra.

Em especial, o Big Data e o seu correspondente uso na análise de dados figuram como pressupostos para o funcionamento de tecnologias baseadas em inteligência artificial. Com isso, não apenas a maioria dos processos empresariais se tornou inviável sem o processamento de dados, mas a própria violação da privacidade se tornou um negócio.

Com a evolução do pensamento jurídico acerca da tutela da intimidade e a subsequente promulgação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) no Brasil e do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) no âmbito da União Europeia, a privacidade gradativamente passou a perder o caráter individualista e se transformar em uma forma de promoção da igualdade, rompendo o nexo com a sua formação associada a estratos sociais.

Nessa acepção, verificou-se uma mudança nos sujeitos que clamam por privacidade, sendo precisamente dessa dimensão coletiva o ponto de partida da conotação contemporânea da proteção de dados pessoais.

Ocorre, no entanto, que os interesses ameaçados no âmbito da proteção de dados pessoais se encontram difusos e mal organizados. De fato, os indivíduos ainda carecem de recursos para influenciar as condições do uso de seus dados, tanto por desconhecimento da matéria – ou falta de interesse – quanto por inexistirem meios que lhes concedam poder de barganha.

Além disso, a evolução de técnicas de perfilamento reduziu os custos para a realização de análises preditivas sobre uma quantidade enorme de dados. Nesses casos, as inferências baseadas em correlações afetam não apenas os usuários que consentem à coleta de seus dados. Aplicando-se a análise de dados sobre um conjunto, obtêm-se dos dados crus novas informações sobre o titular em relação às quais, por terem sido obtidas de forma indireta, ele frequentemente sequer tem conhecimento, além de inferências sobre aquelas pessoas ou grupos sociais com os quais detém vínculo.

Ou seja, quando um indivíduo consente em compartilhar dados sobre si, também está fornecendo informações sobre outros.

Sob essa perspectiva, muitos dos dados chamados de pessoais transcendem essa característica, manifestando-se, também, como dados interpessoais e relacionais, podendo afetar até mesmo um número indeterminado de pessoas. Nesse sentido, por exemplo, um indivíduo que resida em um bairro periférico, ainda que sempre tenha arcado com as suas obrigações financeiras, pode ser automaticamente enquadrado em um grupo de risco por empresas de proteção ao crédito por conta do histórico de outras pessoas pertencentes a seu grupo social.

Dados sobre o resultado de um teste de covid-19 impactam a todos que possam ter tido contato com o seu titular. Informações genéticas compartilhadas possibilitam deduções sobre os familiares, inclusive aqueles que sequer nasceram para consentir com tal coleta. Esses modelos de análise de dados, no entanto, com frequência confundem correlação com causalidade, prejudicando especialmente minorias.

Além dos riscos expostos, com o avanço da tecnologia, seria natural esperar que as informações fluíssem cada vez melhor. Paradoxalmente, porém, a economia movida a dados transformou-se num fator de concentração de riqueza e de poder em grandes corporações do ramo da informática (Big Techs), dando origem a monopólios de dados (data-opolies).

Dessa conjuntura decorrem dois problemas principais. Em primeiro lugar, a concentração do poder de mercado nas Big Techs limita o potencial dos dados para o altruísmo, porque, assim, a maior parte dos dados se torna inacessível ao setor público e às entidades privadas com fim social. Pelas mesmas razões, a atual dinâmica concorrencial traz ameaças consideráveis a pequenas e médias empresas, as quais, apesar de representarem entre 60% e 70% dos novos empregos criados em países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), não têm condições adequadas de competir nesse mercado.

Partindo da ideia geral de Hoffmann-Riem de que a inovação pode ocorrer pelo direito e no direito, assim como fazendo do método hipotético-dedutivo e de uma abordagem comparativa-funcional contextualizada, tem-se por conclusão que, na era do Big Data, os problemas relativos ao consentimento para o compartilhamento de dados pessoais (principal fundamento do sistema normativo vigente) transcendem a simples esfera individual, fazendo com que instrumentos de ação coletiva sejam imprescindíveis para a tutela da privacidade.

Embora a tradição processual de tutela coletiva no direito brasileiro tenha prontamente acolhido em seu escopo as demandas que versam sobre a violação dos direitos previstos na LGPD e no RGPD, a natureza dinâmica do compartilhamento de dados pessoais exige que, para além de remédios processuais posteriores, seus riscos sejam antecipadamente protegidos. Nesse contexto, mostra-se essencial a concepção de novos instrumentos de governança, como os data trusts. Nestes, cria-se uma camada intermediária entre os titulares e os controladores dos dados, na qual predomina a agência coletiva decorrente do agrupamento volumoso de dados de diversas origens.

Assim, detêm potencial para elevar a posição dos titulares quanto à negociabilidade de termos e condições do processamento dos dados, similar ao que ocorre no direito trabalhista com os sindicatos. Da mesma forma, os data trusts mostram-se promissores para o fim de extravasar o poder associado ao agrupamento de dados, tanto para fins altruístas quanto para facilitar o seu acesso legal e regulado por pequenas e médias empresas, mitigando desigualdades concorrenciais.

(*) João Vitor Tissot é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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