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A indenização decorrente da instituição de áreas de proteção ambiental

Por Felippe Buffara Fretta e Mateus Stallivieri (*) | 21/02/2024 13:30

A Constituição de 1988 atribuiu ao poder público a incumbência de estabelecer regimes diferenciados de uso e proteção em áreas consideradas como especialmente relevantes do ponto de vista ecológico (artigo 225, §1º, III). Entre os diferentes tipos de espaços territoriais especialmente protegidos estão as unidades de conservação (UCs).

Para uniformizar o complexo aparato legislativo existente, foi aprovada a Lei Federal 9.985/2000, que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e fixou critérios e normas para a criação, implantação e gestão das UCs. As UCs foram divididas em dois grupos: de proteção integral, com cinco modalidades, e de uso sustentável, com sete (artigo 7º).

Entre as UCs de uso sustentável estão as áreas de proteção ambiental (APAs), que possuem como objetivo conciliar a ocupação humana com a proteção da biodiversidade e a utilização dos recursos naturais disponíveis em seu território.

As APAs permitem diferentes graus de interferência humana, sendo geralmente criadas em regiões já antropizadas, com terras públicas e privadas (artigo 15). Ao contrário dos parques ou das estações ecológicas, UCs de posse e domínio público em que o Estado deve retirar o particular de dentro da sua extensão por meio de desapropriação (artigo 10 e 11), as APAs comportam a manutenção de imóveis de particulares.

É em decorrência da coexistência de áreas privadas com as restrições de uso que os particulares podem, muitas vezes, ser lesados, tendo o seu direito de propriedade afetado. Nesses casos cabe o questionamento: é possível exigir uma compensação financeira, em forma de indenização, por decorrência da imposição de restrições no bem particular?

A análise do processo de criação, dos efeitos dessas restrições e do comportamento da jurisprudência ajudam a responder essa pergunta.

Criação das APAs - Por conta da existência de diferentes interesses, a implementação dessa modalidade de UC ocorre mediante extensa participação popular, permitindo que o poder público compreenda o grau de harmonização necessário.

As APAs são criadas por ato normativo, que na maior parte das vezes consiste em encaminhamentos gerais e vinculativos para a orientação de um regramento específico. Nesse ato deve estar prevista a localização precisa da APA, bem como seus limites e o manejo pretendido.

Com base no ato normativo, é elaborado o plano de manejo, documento obrigatório que prescreve o que precisamente pode ser feito e em quais locais. É nele que estarão detalhadas as restrições atribuídas ao particular.

O plano de manejo de uma APA é uma regulamentação que, dentro do possível, não deve impedir o aproveitamento da terra, dividindo e zoneando o território com restrições e permissões que harmonizem ao máximo possível o interesse do particular com a proteção ambiental.

Em regra, as restrições advindas de uma APA não inviabilizam a exploração do bem particular. A simples criação de uma APA não exige desapropriação do imóvel privado, nem mesmo enseja no pagamento de indenização por parte do poder público, tendo em vista que não necessariamente acarretará prejuízo ao direito de propriedade do particular.

Por outro lado, nem sempre todas as atividades serão compatíveis com os objetivos da APA, sendo possível que certas restrições onerem de tal forma o particular que inviabilizem o próprio uso da sua propriedade.

Restrições do direito de propriedade - A impossibilidade de realização de certas atividades no interior da APA pode ocorrer tanto pela incompatibilidade da atividade com o uso sustentável dos recursos naturais, como também nas hipóteses que o Plano de Manejo optou por instituir restrições que inviabilizam sua realização.

A repartição do território da APA em setores, cada qual submetido a normas específicas de uso e disposição dos recursos, pode impor a uma seção severas restrições, capazes, inclusive, de esvaziar parcial ou integralmente o conteúdo econômico da propriedade nela inserida.

Ocorrido esse esvaziamento é desrazoável que o proprietário precise arcar, individualmente, com o ônus da criação da APA, sendo racional que a administração pública tenha a obrigação de compensá-lo. A questão é que nem sempre é fácil verificar se, na prática, o conteúdo econômico da propriedade de fato foi esvaziado, inclusive por uma dificuldade de compreensão dos conceitos envolvidos.

A propriedade é reunião dos direitos autônomos de usar, gozar, dispor e reaver determinado bem, e, juntos, esses direitos permitem o exercício pleno dos poderes. O conteúdo econômico de uma propriedade, por sua vez, consiste nas atividades desenvolvidas, ou que podem ser desenvolvidas, em um bem, desde que possuam relevância do ponto de vista financeiro.

Caso o particular seja impedido, por meio da imposição de uma restrição, de exercer um dos seus direitos autônomos, tornando impossível a manutenção ou posterior execução de determinada atividade, o conteúdo econômico da propriedade será impactado, e dependendo do grau de restrição, completamente esvaziado.

Dessas definições surgem duas dificuldades na busca por medidas indenizatórias:

(1) Quase toda imposição de restrição acarreta, de alguma forma, ao menos um esvaziamento parcial do conteúdo econômico da propriedade que deveria ser compensado, algo que, adiantamos, na prática não acontece;

(2) Verifica-se certa dificuldade teórica em determinar quais os efeitos da intervenção causada pela restrição no imóvel particular.

Desapropriação indireta x limitação administrativa - É possível afirmar que existem ao menos dois entendimentos distintos quanto à forma de se exigir a indenização decorrente da imposição de restrições pelas APAs, acarretando repercussões práticas relevantes.

Considerando que as restrições criadas esvaziam o conteúdo econômico da propriedade, surge entendimento pela exigência de indenização por meio de uma equivalência com o instituto da desapropriação indireta.

A desapropriação indireta ocorre quando o Estado se apossa do bem do particular sem prestar obediência às formalidades e etapas dos procedimentos expropriatórios, sendo essa modalidade de desapropriação exceção no ordenamento.

A equivalência possui como fundamento o fato de que quando se institui restrições de uso, o particular perde o direito de usufruir do seu bem, e assim como na desapropriação indireta, o proprietário tem seu direito de propriedade afetado sem indenização prévia.

Contudo, apesar da compatibilidade do ponto de vista retórico, há uma diferença principal que dificulta a aplicação da equivalência. Ainda que as restrições criadas pela instituição de uma APA também estejam justificadas na necessidade/utilidade pública ou no interesse social, elas não resultam na transferência do bem afetado ao acervo patrimonial público, sendo esse elemento formal essencial para caracterizar qualquer desapropriação.

Além disso, somente seria possível alegar a ocorrência de desapropriação indireta nos casos em que a manutenção de toda atividade no imóvel fosse inviável, situação em que provavelmente existiria algum vício na própria instituição da APA, que objetiva harmonização e não total impedimento do exercício econômico.

Como alternativa à tese da desapropriação indireta, outro entendimento parte da perseguição da indenização por meio da alegação de ocorrência de limitações administrativas.

As limitações administrativas são imposições gerais e abstratas, voltadas para bens, imóveis e propriedades indeterminadas, e que visam à concretização de interesses coletivos. Nota-se que essa é exatamente a definição das restrições de uso criadas pelas APAs, considerando que elas regulamentam o exercício do direito para que ele “[…] não esbarre com óbices opostos pelo poder público em prol do interesse coletivo” [2].

O grande problema no pleito da indenização em decorrência da alegação de ocorrência de limitação administrativa é que, tipicamente, não havendo perda do bem em favor da Administração, não há pagamento de compensação, motivo pelo qual surge reação à aplicação da tese.

Assim, ainda que a limitação administrativa se aproxime mais que a desapropriação indireta nos casos de imposição de restrições administrativas criadas por APAs, a verdade é que ambos os casos possuem dificuldades conceituais. Para verificar como o Judiciário tem enfrentado, na prática, os diferentes problemas mencionados até agora, tornou-se necessário uma investigação jurisprudencial.

Análise judicial - Para a análise de jurisprudência, foi instituído como marco dois tribunais: o STJ e o TRF-4, filtrando como ambos enxergam a possibilidade de impor à Administração o dever de indenizar nos casos de implementação de APAs, sendo essa uma pesquisa qualitativa e exaustiva das decisões.

Desapropriação indireta ou limitação administrativa? - A maioria das decisões considerou que inexistindo perda da propriedade em favor do Estado, os impedimentos consistem em limitações administrativas e não em desapropriações indiretas. Mesmo nos casos mais extremos, quando o potencial econômico foi esvaziado, a titularidade do bem permanece nas mãos do particular, não sendo, para os tribunais investigados, hipótese de desapropriação. Na prática, o que tem acontecido é uma dilatação conceitual da limitação administrativa para que ela passe a comportar, em casos específicos, o pagamento de compensações.

Qual o limite do esvaziamento econômico para que ocorra indenização? Apesar de reconhecer um alargamento conceitual da limitação administrativa, os julgados encontrados decidiram pelo pagamento das indenizações apenas em situações excepcionais, casos em que o uso da propriedade restou inviabilizado pelas restrições. Não basta, para os tribunais investigados, a configuração de uma “simples” limitação do direito de propriedade, mas sim uma restrição tão severa de impeça o exercício desse direito. Restrições que apenas restringem o uso indiscriminado do bem, como ocorre na maioria nas APAs, não teriam, então, o potencial de gerar indenizações ao particular.

Quanto tempo o particular tem para exigir a indenização? Considerando se tratar de um pedido de indenização em decorrência de imposição administrativa, o prazo para perseguir a indenização é de cinco anos. No tocante a esse tópico, duas exceções precisam ser consideradas. Ao analisar situação em que o próprio poder público autorizou atividade, o prazo prescricional considerado contou da cessação do ato administrativo de liberação. Apesar do caso concreto ter uma série de peculiaridades, registra-se precedente no sentido de flexibilização da contagem prescricional. Além disso, caso o particular tenha adquirido o imóvel em momento em que já existiam restrições, é ausente o interesse de agir quanto ao pleito compensatório, pois não há frustração na expectativa de uso do imóvel.

Ao fim, o que se verifica é que, em regra, a imposição de restrições pela instituição de APAs não acarretam direito de indenização. Excepcionalmente, nos casos em que o uso da propriedade seja inviabilizado, pode o particular pleitear a compensação alegando a existência de limitações administrativas no imóvel que prejudicaram o exercício do seu direito de propriedade, sendo o prazo prescricional de cinco anos.

(*) Felippe Buffara Fretta é graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e pós-graduando em Advocacia Cível pela Ebradi.

(*) Mateus Stallivieri da Costa é advogado, doutorando em Direito pela FGV/SP, mestre em Direito pela UFSC e especialista em Direito Ambiental e Urbanístico e em Direito e Negócios Imobiliários pelo Ibmec-SP.

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