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Julgamentos ideológicos e a composição das Cortes Supremas

Roger Stiefelmann Leal (*) | 21/11/2020 08:05

“Tanto o senador McConnell quanto o presidente Trump (…) estão tentando abarrotar os tribunais com todos os juízes ideológicos que puderem.”

Proferido após o falecimento de Ruth Ginsburg, o comentário do ex-presidente Bill Clinton expressa o atual estágio do debate sobre a composição da Suprema Corte dos EUA, o desempenho de suas funções e o significado das novas nomeações. A questão sobre a inclinação ideológica da Corte e de seus integrantes não é, ademais, estranha ao ambiente político brasileiro. O recente episódio da nomeação do novo ministro do STF reavivou a discussão, sobretudo em virtude de manifestações acerca de seu posicionamento político. Ao se atribuir relevância à orientação ideológica dos membros da Corte e de suas decisões, enfatiza-se noção que propõe indevida sobreposição conceitual entre as esferas legislativa e judicial. No processo legislativo, delibera-se sobre propostas que, caso aprovadas, definem parâmetros de observância obrigatória a toda a sociedade. Para isso, toma-se em consideração as diversas visões ideológicas que conquistaram representação político-legislativa. Tais visões apontam, não raro, para soluções distintas, com diretrizes que melhor atendem ao bem comum. A deliberação envolve dinâmicas variadas de atuação dos agentes políticos que vão desde a confrontação entre diferentes visões até o diálogo voltado à conciliação de posições políticas e à identificação de pontos passíveis de concessão ou compromisso. Prevalece a solução possível, que consegue reunir o apoio da maioria.

Nesses termos, considerar preponderante na atuação da Corte Suprema e de seus integrantes a vinculação a determinada ideologia induz compreensão de que — de modo similar aos parlamentares e governantes eleitos — seus julgamentos decorrem da escolha de soluções que melhor promovem o bem comum. As decisões judiciais, nessa linha, assumiriam o papel de veicular o discurso jurídico necessário a justificar o resultado condizente com a visão do julgador, ainda que, para isso, seja necessário distorcer o sentido dos textos normativos. O tribunal concorreria, desse modo, com o legislador na definição das diretrizes que governam a vida em sociedade. Em síntese, faria política e não justiça. Substituiria o direito pela ideologia.

Num estado democrático, a função legislativa é a atividade estatal responsável por imprimir concepções ideológicas à ordem jurídica. Do processo legislativo democrático resultam textos legais que estruturam soluções necessariamente impregnadas dessas visões ideológicas representadas pelos agentes que concorreram para sua aprovação. Trata-se da concretização da máxima fundamental, consagrada na Constituição, de que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos (…). Aos tribunais, diferentemente, cabe interpretar e dar aplicação a esses textos normativos em face das controvérsias que lhes são submetidas, fazendo prevalecer as diretrizes adotadas pelos representantes eleitos.

É claro que, caso as leis aprovadas estejam em “evidente oposição” ao “manifesto teor da Constituição” – na clássica lição de Hamilton –, caberá aos tribunais e, em última instância, à Corte deixar de aplicá-las. Trata-se da chamada jurisdição constitucional, cujo exercício deve ou deveria ser excepcional, tendo lugar apenas em caso de flagrante ofensa à Constituição.

É na seara da defesa da Constituição que reside aspecto central à discussão da suposta atuação ideológica das Cortes. As constituições, ao dispor sobre direitos fundamentais, contemplam enunciados normativos de elevada abstração e generalidade, inscrevendo ideais e palavras de ordem como bens constitucionalmente protegidos. Assim, postula-se garantir a inviolabilidade da igualdade, da intimidade e da propriedade, bem como a livre manifestação do pensamento e a liberdade de crença religiosa, sem apresentar especificações que permitam compreender mais concretamente seu alcance e significado. Mostra-se de extrema dificuldade – assinalava o Justice Robert Jackson em julgado da Suprema Corte dos EUA – “a tarefa de traduzir as generalidades majestáticas da Declaração de Direitos (Bill of Rights), (…) em restrições concretas a agentes públicos (…)”.

Essas generalidades são objeto das principais divergências entre as ideologias políticas. Sobre elas – igualdade, propriedade, segurança, liberdade, trabalho, saúde etc. – são erigidos os discursos retóricos que conferem substância às distintas linhas ideológicas, atribuindo-lhes significados, pesos e magnitudes diferentes. Ou seja, tais expressões encontram-se no centro do debate político que caracteriza o regime democrático.

Em certa medida, as cláusulas constitucionais que se limitam a assegurar secamente o direito a esses ideais, sem explicitar suas implicações concretas, testam as virtudes e a posição institucional de juízes e tribunais, principalmente, das Cortes Supremas. Instam os órgãos que exercem jurisdição constitucional a encerrar tais generalidades majestáticas em concepções filiadas a linhas ideológicas e impô-las à sociedade de forma ampla, expansiva e otimizante.

Por isso, uma das principais virtudes de um juiz constitucional é a capacidade de separar sua opinião política do exercício do poder de julgar. Não lhe cabe se colocar como intérprete e representante legítimo dos interesses da população de modo a fazer prevalecer sua visão sobre o bem comum. Essa posição cabe a outras instâncias e autoridades mais bem equipadas para tanto.

A importância dessa virtude, aliás, não passa despercebida ao ambiente político. Ronald Reagan, ao falar, em 1986, de suas indicações à Suprema Corte, destacou esse aspecto, afirmando procurar “escolher juízes que olham para o direito como algo a ser honrado, respeitado e interpretado de acordo com a intenção do legislador, sem capricho ou ideologia”.

Por seu turno, assinalou Barack Obama, em 2016, que, em primeiro lugar, buscava selecionar nomes que tivessem “integridade intelectual”. Ou seja, devem eles “olhar para os fatos e o direito, mesmo que lhes pareça desconfortável, que não gostem do resultado, e aplicar o direito, reconhecendo que esta é sua função”.

Dir-se-á, contudo, que o discurso pode não ser coerente com a prática. É perfeitamente possível alardear a contenção e o equilíbrio do juiz e aprovar nome alinhado à sua orientação ideológica para compor a Corte Suprema. Tal prática, ao contrário, estimularia eventuais candidatos a se comprometerem com determinadas concepções políticas e impô-las como conteúdo das normas constitucionais. É possível, porém, cogitar reformas que inibam tal comprometimento político, a exemplo da ampliação do quórum de aprovação dos nomes indicados. A necessidade de obter o apoio de distintas correntes representadas no Legislativo incentiva postura suprapartidária e equidistante, desencorajando engajamento mais evidente.

Às Cortes Supremas compete dizer o direito como ele é e não como deveria ser. Cabe-lhes, parafraseando Aliomar Baleeiro, função semelhante à do árbitro de futebol. A elas cumpre “apitar, botar jogador para fora do campo, marcar pênalti, botar ordem no campo”. Não devem, portanto, “jogar, meter o pé na bola” e marcar gols. A torcida não suportaria árbitro parcial que interfere no jogo para favorecer ou prejudicar uma das equipes.


(*) Roger Stiefelmann Leal é professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP

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