ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no Twitter Campo Grande News no Instagram
MAIO, SEXTA  10    CAMPO GRANDE 24º

Artigos

Por uma vida nada óbvia

Camila Maués dos Santos Flausino (*) | 20/11/2020 06:20

A democracia permite-nos debater sobre diversos temas, e quanto mais controversos e transversais eles forem, mais se avolumam as vozes e opiniões advindas dos variados segmentos sociais.

Porém, há um limite ético que demarca o substrato dos discursos e que, por consequência, repelem da cena democrática aqueles que violam direitos fundamentais. Suplantar esse limite ético implica, por sua vez, retrocesso civilizatório, contribui para a deterioração social e desbota o colorido de diálogos emergentes à democracia.

Um exemplo claro e vivaz de ações, práticas e discursos que, deliberadamente, aviltam à natureza humana são aqueles caracterizados como racismo. O necessário combate a essa ideologia desumanizadora é o mote da comemoração ao dia da consciência negra, definida pela data de 20 de novembro.

É sobre o significado decorrente do simbolismo dessa data que iremos aqui tratar, sob a ótica de uma mulher negra de origem popular, hoje Defensora Pública.

A vida para uma pessoa pobre e negra dificilmente resultará em conquistas “óbvias”. Falo de uma obviedade extraída de uma linearidade de acontecimentos e realizações pessoais e profissionais muito bem estabelecida em gerações anteriores ou expectadas pelos pais.

De modo geral, na classe média, é esperado que pais que mantenham um lar equilibrado tenham filhos que, desde sua tenra idade, se alimentarão suficientemente bem e frequentarão escolas que estimulem precocemente sua capacidade cognitiva; que seus filhos se graduem em universidades públicas, falem inglês e pratiquem esportes com desenvoltura; que, após se graduarem em curso superior, iniciem sua carreira profissional com relativa facilidade engajada pela influência e apoio de parentes e amigos; que se casem e ocupem espaços de decisão nos mais diversos níveis de influência; e que, por fim, tenham filhos com acesso a mais privilégios do que aqueles acumulados na geração anterior.

Por trás dessa “denúncia” da obviedade não se estar a desconsiderar o esforço individual e os méritos que a classe média branca historicamente proporciona aos seus. Os ganhos pessoais e as conquistas profissionais são sempre comemoráveis e jamais deverão ser desconsiderados a partir de uma microvisão de mundo.

Entretanto, aqui se propõe a reflexão sobre a razão pelas quais essa obviedade não se manifesta, de modo geral, nas famílias compostas por pessoas negras, majoritariamente pobres e confinadas nas camadas sociais baixas. A resposta pode ser extraída das estatísticas, herança maldita de quase quatro séculos de escravidão e que evidenciam o racismo que mancha nossa democracia.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)[1], de 2019, brancos têm renda 74% superior à de pretos e pardos; cargos gerenciais, estratégicos, portanto, são ocupados por 68,6% de brancos contra 29,9% de pretos ou pardos; quanto à distribuição de renda e condições de moradia, cerca de 15,4% das pessoas brancas ganham menos que cinco dólares e cinquenta centavos por dia, enquanto que pretas e pardas, que dispõem da mesma renda configuram 32,9% desse total; para cada grupo de cem mil jovens, em 2017, 34 corresponde ao número de homicídios de pessoas brancas, enquanto que entre as pessoas pretas e pardas esse número salta para 98,5; considerando-se a representação política, 75,6% dos deputados eleitos em 2018 são pessoas brancas, enquanto que apenas 24,4% são pessoas pretas e pardas.

Não é difícil concluir que o acesso ao mercado de trabalho, à água potável, ao saneamento básico, à educação de qualidade, à segurança, dentre outros tantos direitos básicos é sistematicamente subtraído dos estratos sociais mais baixos e, por outro lado, é largamente oferecido às classes mais altas, configurando-se, sob a ótica dos mais pobres, como verdadeiros privilégios desigualmente distribuídos entre os cidadãos brasileiros.

Somente através do combate ao racismo estruturalmente arraigado na sociedade brasileira é que essas estatísticas serão pareadas, atacando-se a causa dessas disparidades, o fundo dessas desproporções. O combate ao racismo no sistema democrático deveria ser assunto unânime, liquidante, e discursos que ignoram ou legitimam o racismo deveriam ser incogitáveis em razão do limite ético que pesa sobre temas que atingem a dignidade humana.

Contudo, a ideologia racista ainda tem espaço em círculos de debates ou travestidos em negacionismo e em condutas discriminatórias, que cinicamente legitimam a violência por trás das desigualdades sociais, econômicas e políticas que empurram as pessoas negras para pobreza ou retêm-nas na miséria.

No estágio civilizatório atual, deveríamos estar debatendo sobre quais mecanismos são mais eficazes ou qual metodologia deveria ser empregada para que as pessoas negras tenham acesso amplo a direitos básicos concedidos à maioria das pessoas brancas, de forma que o Brasil, enfim, arvore-se ao patamar de desenvolvimento pleno.

Contudo, enquanto houver segmentos que, direta ou indiretamente, defendam o racismo em solo pátrio, seja através do negacionismo, seja através da (re)legitimação do mito da democracia racial à moda de Gilberto Freyre, há muito que resistir em busca da efetivação da cidadania plena das pessoas negras.

O dia 20 de novembro simboliza justamente a resistência, a luta por igualdade e pela inclusão plenas de pessoas negras em espaços de poder e de representatividade.

Representa o fomento à adoção de práticas antirracistas contínuas nas instituições públicas e no setor privado e a ruptura do terrível teto de vidro que impede que crianças, adolescentes e jovens negros tenham acesso a direitos básicos e ascendam socialmente, estilhaçando a “obviedade” às avessas, manifesta em evasão escolar, trabalho infantil, encarceramento e desnutrição.

(*) Camila Maués dos Santos Flausino é defensora pública desde 2013, titular da 4ª Defensoria de Defesa da Mulher de Campo Grande.

Nos siga no Google Notícias