Quando a mentira vira debate – e, por estar sendo discutida, se torna legítima
Vivemos tempos em que a verdade parece cada vez mais vulnerável. Em nome do “outro lado”, da “opinião pessoal” ou da “liberdade de expressão”, mentiras gritantes ganham espaço em discussões públicas como se fossem pontos de vista legítimos. E assim, sem perceber, caímos em uma armadilha perigosa: ao debatermos uma mentira, mesmo com a intenção de desmenti-la, damos a ela uma visibilidade que pode ser confundida com validade. O simples fato de algo estar sendo debatido não o torna automaticamente digno de crédito. Mas, na prática, é isso que acontece — e com consequências profundas.
O falso equilíbrio e a ilusão da neutralidade
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Parte do problema está no desejo quase obsessivo por equilíbrio. Em muitos espaços — especialmente nos meios de comunicação — há uma tentativa de mostrar “os dois lados” de todas as questões, como se toda opinião merecesse o mesmo peso. Só que nem todo “lado” é legítimo. Quando, por exemplo, colocamos um cientista de um lado e um negacionista do outro para discutir vacinas, damos a entender que há uma dúvida real, quando não há. E esse falso equilíbrio transforma mentiras em “versões alternativas”.
Esse movimento cria um ambiente onde a mentira não apenas existe, mas prospera. Quando ela é colocada na mesa como tema de debate, se torna mais palatável, mais próxima, mais aceitável. Passa de aberração a possibilidade. E isso muda tudo.
A mentira como narrativa de sedutora
As mentiras que se tornam debates geralmente não são inocentes. Elas são pensadas, construídas, embaladas de forma sedutora. Tocam medos, reforçam preconceitos, simplificam problemas complexos. Ao serem discutidas em público, ganham o status de narrativa, e a narrativa, bem contada, tem poder. A mentira repetida, por mais absurda que seja, vai se normalizando. E com o tempo, muita gente já não sabe mais onde termina a dúvida legítima e começa a desinformação.
O problema é que o debate exige escuta, análise, ponderação. E a mentira, ao ser debatida, se beneficia dessas ferramentas. A verdade precisa se explicar. A mentira, não. Ela apenas precisa ser ouvida para encontrar eco.
O custo psicológico e social da dúvida fabricada
Essa ambiguidade tem um custo real. Quando mentiras ganham espaço de discussão, confundem. As pessoas passam a duvidar do que é certo, hesitam em agir, relativizam o óbvio. E essa dúvida plantada é estratégica: paralisa, desmobiliza e gera ruído.
Na esfera social, isso alimenta polarizações artificiais, onde o que deveria ser consenso vira motivo de conflito. Na esfera psicológica, esgota. Ter que argumentar o tempo todo sobre o que já deveria estar consolidado cansa, e muita gente desiste de se posicionar — o que favorece ainda mais a mentira.
Responsabilidade: quem dá palco, dá poder
Ao colocar uma mentira como tema de debate, damos a ela palco. E quem dá palco, dá poder. A responsabilidade está em todos os níveis: nas redes sociais que amplificam vozes negacionistas em nome de engajamento, nos comunicadores que confundem liberdade de expressão com liberdade de desinformar, e em nós mesmos, que muitas vezes compartilhamos conteúdos “só para mostrar o absurdo” — sem perceber que estamos, na prática, multiplicando o alcance daquela falsidade.
Não é censura. É filtro. É responsabilidade.
É importante entender que não se trata de censura. Trata-se de responsabilidade. Mentiras perigosas não devem ser discutidas como se fossem opiniões. Devem ser tratadas como o que são: ameaças ao bom senso, à ciência, à saúde mental coletiva. A liberdade de expressão nunca foi liberdade de espalhar mentiras impunemente. E combater a mentira não é calar — é proteger.
O silêncio estratégico e o foco na verdade
Nem toda mentira merece resposta. Algumas devem ser ignoradas. Outras, corrigidas com firmeza e objetividade, mas sem espetáculo. Dar palco à mentira é, muitas vezes, o maior favor que se pode fazer a ela.
Em tempos de pós-verdade, onde o que importa é o que parece verdadeiro, precisamos ser vigilantes. O debate é essencial à democracia, mas só é saudável quando parte de fatos, não de invenções. Mentiras não são ponto de partida. São armadilhas. E quando nos vemos debatendo com elas, talvez seja hora de recuar, não por fraqueza, mas por lucidez. Porque a verdade não precisa gritar. Ela só precisa ser protegida do ruído.
(*) Cristiane Lang, psicóloga clínica especializada em oncologia
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