Filhos que cresceram vendo mães apanharem vivem traumas que Justiça não registra
Histórias de vítimas revelam como sequelas atravessam gerações; especialista alerta para impactos na infância
Quando um ambiente que deveria oferecer acolhimento se transforma em espaço de violência, medo e humilhação, os impactos vão além da dor física. Muitas vítimas carregam cicatrizes emocionais que podem durar anos ou até a vida inteira.
RESUMO
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A violência doméstica em Mato Grosso do Sul registrou 14 mil casos em 2025, sendo 745 envolvendo crianças e adolescentes. As marcas deixadas vão além das agressões físicas, causando traumas psicológicos duradouros que afetam relacionamentos e autoestima. Especialistas alertam que o impacto é especialmente devastador em crianças, que aprendem a se relacionar com o mundo através dos pais. Quando expostas à violência, crescem carregando medo, insegurança e desamparo, como revelam os casos de Marcelo e Maria Clara, que vivenciaram agressões na infância.
Somente em 2025, Mato Grosso do Sul registrou 14 mil casos de violência doméstica, segundo o Monitor da Violência Contra a Mulher. Desse total, 745 situações envolveram crianças e adolescentes, o que equivale a três ocorrências diárias.
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Por trás dos números, estão pessoas que testemunharam a agressão dentro de casa. Histórias de dor e resistência revelam como o trauma se perpetua, muitas vezes sem sequer chegar ao registro oficial. Este é o caso das vítimas ouvidas nesta reportagem.
Infância interrompida
Motorista de aplicativo, Marcelo (nome fictício), hoje com 47 anos, cresceu assistindo o pai agredir a mãe. Desde pequeno, tentava intervir, mesmo sem entender o peso daquilo.
“Eu me sentia impotente e, ao mesmo tempo, pensava que deveria respeitar meu pai. Eu aprendi assim”, lembra.
Aos 7 anos, presenciou a cena mais marcante: o pai alcoolizado ameaçava a mãe com uma faca, quando o menino o empurrou. O homem caiu desacordado, e foi nesse momento que a mãe decidiu fugir de casa com os três filhos. Marcelo era o mais velho e nunca mais conviveu com o pai, que morreu 30 anos depois em outro Estado.
“Ficou uma lacuna por não ter retomado contato. Minha mãe nunca falou sobre a violência que sofreu, e isso ficou comigo por anos”, diz.
A dor que vem da própria mãe
No interior do Estado, Maria Clara (nome fictício), diarista de 54 anos, cresceu apanhando da mãe com cintas, pedaços de pau e cabos de vassoura. Era a caçula de 17 irmãos e também sofria agressões dos mais velhos. O pai, alcoolista, batia na esposa, mas nunca nos filhos.
“Sempre soube que minha família era desestruturada”, afirma.
Aos 12 anos, em uma briga com os irmãos, se recusou a descascar batatinhas e foi surpreendida pelas costas.
“Minha mãe bateu muito no meu rosto e na minha cabeça”, relembra a última surra.
Dias depois, a mãe morreu e Maria Clara foi ao velório ainda com o olho roxo por conta das agressões. Apesar da violência sofrida, ela admite que só há dois anos, em terapia, começou a elaborar o que viveu.
“Passei muito tempo anestesiada. Eu gosto da minha mãe e entendo porque ela era agressiva. Mas agora sinto tristeza, depressão. Parece que não tive tempo de sentir isso antes.”
A violência e os traumas
Especialista alerta que a violência doméstica deixa marcas psicológicas duradouras, muitas vezes invisíveis.
“Traumas vividos na infância podem influenciar relacionamentos, autoestima e saúde mental por toda a vida”, explica a psicanalista Pricila Pesqueira de Souza, membro do Fórum do Campo Lacaniano de Mato Grosso do Sul e do Instituto Ágora.
Segundo ela, a violência doméstica rompe laços afetivos e provoca impacto devastador, sobretudo em crianças.
Para a psicanalista, os impactos são ainda mais profundos nas crianças, que estão em plena formação da subjetividade.
“É a partir dos pais que elas aprendem a se relacionar com o mundo. Por isso, quando vivenciam violência, crescem com a marca do medo, da insegurança e do desamparo”, explica.
Onde denunciar
Disque 180 – Central de Atendimento à Mulher
Ligue 190 – Polícia Militar
Promuse (Programa Mulher Segura): (67) 99180-0542 (inclusive WhatsApp)
1ª DEAM (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher)
Endereço: Rua Brasília, s/n, Jardim Imá (Casa da Mulher Brasileira). Telefones: (67) 4042-1324 / 1319