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Cidades

Morador de Recife tenta provar que Justiça de MS prendeu homem errado

Aos 51 e hipertenso, foi preso na pandemia, mas tudo indica que polícia de Olinda cometeu erro ao cumprir decisão judicial de MS

Izabela Sanchez | 30/07/2020 08:25
Do lado esquerdo, documento de Alexandre, preso no dia 27 de maio e ao lado, RG que estava com homem preso em 2001 (Imagem: Marco Zero)
Do lado esquerdo, documento de Alexandre, preso no dia 27 de maio e ao lado, RG que estava com homem preso em 2001 (Imagem: Marco Zero)

Alexandre Dias Bandeira, 51, está preso há dois meses no Cotel (Centro de Observação e Triagem Everardo Luna), na grande Recife (PE), depois que a Polícia Civil do Estado conseguiu cumprir ordem de captura emitida pela Justiça de Mato Grosso do Sul, 19 anos depois de condenação por tráfico em Bataguassu, a 335 km de Campo Grande.

Não é só o lapso de dezenove anos entre uma sentença e o cumprimento dela, na prática, que chamam a atenção neste caso. Polícia de Pernambuco e Judiciário de Mato Grosso do Sul podem ter cometido injustiça ao prender o homem errado.

Hipertenso, Alexandre está longe da esposa que não pode o ver por determinação estadual de evitar explosão de casos de covid-19 nos complexos penitenciários de Pernambuco. Ele, que tem comprovação de que estava trabalhando em outro Estado quando o crime ocorreu em Mato Grosso do Sul, só ficou sabendo do processo de um estado tão longe em 2011, quando pediu para regularizar seu título de eleitor.

A trajetória - A história é contada pelo Campo Grande News em parceria com o site Marco Zero, que investigou a história. Tudo começa em 23 de maio de 2001, no km 97 da BR-267 em Mato Grosso do Sul, quando dois policiais rodoviários federais deram ordem de parada a um Santana Quantum branco, com placas de Foz do Iguaçu (PR).

Dentro, estava homem que transportava, escondidos no estofado, quase 80 quilos de maconha que disse ter trazido de Ponta Porã, na fronteira com Paraguai. Levaria até São Paulo.

Apresentou documento cujo nome - assim como todas as informações presentes em um RG - era Alexandre Dias Bandeira. Mas, como, então, não se trata da mesma pessoa?

Lucinele segura foto do marido, preso no dia 27 de maio acusado de estar foragido por condenação da Justiça de Mato Grosso do Sul (Foto: Veetmano/Agência JC Mazella)
Lucinele segura foto do marido, preso no dia 27 de maio acusado de estar foragido por condenação da Justiça de Mato Grosso do Sul (Foto: Veetmano/Agência JC Mazella)

Roubo de documentos – Campo Grande News e Marco Zero tiveram acesso ao processo na íntegra. Conforme aponta o site de Pernambuco, que visitou o local onde vive Alexandre, conversou com a esposa e acompanha o caso, a foto que consta no RG anexado ao processo judicial sequer é o mesmo rosto de Alexandre.

Alexandre conta que foi roubado em 2000 e com a carteira foram levados também os documentos. O TRE-PE (Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco) passou dois anos tentando descobrir porque o título do eleitor havia sido cancelado e procurou nos Estados que pareciam óbvios: Rio de Janeiro, por exemplo, onde Alexandre nasceu e de onde se mudou, para Pernambuco, ainda adolescente.

“Não sei mais o que fazer para provar a minha inocência porque nunca saí do estado de Pernambuco depois que vim pra cá na adolescência. Nunca fiz nada que desabonasse a minha conduta”, escreveu  ele para a Justiça Eleitoral.

Só em 2013, o TRE e Alexandre descobriram que o problema era processo por tráfico de drogas em Mato Grosso do Sul. Conforme aponta o site Marco Zero, outros obstáculos marcam a confusão que coloca em risco a vida do trabalhador na prisão. Assim como checou o Campo Grande News, não há fotos do homem preso pela PRF em 2001 anexadas ao processo, apenas fotografias do veículo e da droga apreendida.

Quando foi roubado em 2000, Alexandre registrou boletim de ocorrência na delegacia de Varadouro (PE), mas a unidade, que só passou a digitalizar todos os boletins em 2004, perdeu o documento. Conforem o site de Pernambuco, em 2010, o arquivo geral onde estava guardada a ocorrência e outros boletins foi incendiado.

“Por lei, as delegacias mantêm os documentos em papel guardados por 5 anos e depois os envia para o arquivo geral da Secretaria de Defesa Social. Em 2010, houve um incêndio no prédio onde ficava o arquivo geral e todo o material foi perdido”, cita.


Esta é a fotografia que consta no RG utilizado pelo homem que foi preso em 2001 na rodovia em MS (Foto: Reprodução)
Esta é a fotografia que consta no RG utilizado pelo homem que foi preso em 2001 na rodovia em MS (Foto: Reprodução)

E o foragido? – O homem preso por atuar como “mula” para o tráfico de drogas fugiu da Cadeia Pública de Bataguassu cinco meses depois de ser flagrado, junto com outros 12 detentos. Desde então, nunca foi capturado.

À época da prisão, contou que ganharia R$ 4 mil para o transporte, que desconhecia a droga e que levaria o conteúdo até o estacionamento de supermercado na Marginal Tietê, em São Paulo. Foi pego pela PRF e levado, junto com a droga, para a Delegacia da Polícia Federal em Três Lagoas.

Foi a PF de Três Lagoas que conduziu inquérito que alimenta até hoje o processo judicial. Conforme consultaram tanto o site de Pernambuco quanto o Campo Grande News, nenhum familiar citado pelo homem preso para contar sua história em 2001 estão citados como depoentes, do inquérito ao processo judicial.

Nos depoimentos e oitivas antes de fugir, ele disse que aceitou o serviço pelo desemprego e dívidas e que conheceu homem chamado “Eduardo” na Avenida Internacional em Ponta Porã, exatamente na divisa com Pedro Juan Caballero, no Paraguai.

“O homem preso em flagrante deu um endereço de residência na cidade de Ponta Porã. Afirmou que havia nascido no Rio e que tinha morado entre 1991 e 1993 em Pernambuco. A carteira de identidade apresentada por ele tinha data de expedição de outubro de 1993 pela SSP-PE”, cita o Marco Zero.

E onde estava Alexandre – Tanto a carteira de trabalho quanto o depoimento dos empregadores de Alexandre à época em que essa prisão ocorreu em 2001 no Mato Grosso do Sul contribuem para que o caso do trabalhador seja um erro judicial. Isso porque o documento e o patrão para quem ele disse trabalhar na época comprovam que ele estava no Pernambuco e não em Mato Grosso do Sul.

O clamor de Alexandre para provar que não estava em Mato Grosso do Sul à época foi apresentado ao TRE quando tentava regularizar seu título de eleitor (Foto: Reprodução)
O clamor de Alexandre para provar que não estava em Mato Grosso do Sul à época foi apresentado ao TRE quando tentava regularizar seu título de eleitor (Foto: Reprodução)

O Marco Zero cita que Alexandre foi motorista com carteira assinada de abril de 2000 até janeiro de 2002 na empresa Edna M. da Silva Construções ME, na Vila Popular, em Olinda, ao lado de Recife. Voltou a trabalhar lá entre outubro de 2002 e março de 2003. A reportagem do site conversou com o proprietário do Armazém Popular, que comercializa materiais de construção.

 “Lembro dele, sim, trabalhou comigo aqui. Muito bom funcionário. Era motorista. Pessoa correta. Não lembro de nenhuma viagem pra fora que ele tenha feito nessa época não”, afirma José Carlos Gonçalves da Silva.

Clamor pela liberdade – O caso chegou até o Observatório Popular de Direitos Humanos, que mobilizou a advogada Thaísi Bauer para tentar mais uma vez recurso na Justiça de Mato Grosso do Sul.

Antes, advogado indicado por um pastor evangélico conhecido do casal, Pedro Diogo Marques Guerra, ingressou com habeas corpus na Justiça de Mato Grosso do Sul. O recurso negado pela desembargadora Elizabete Anache no dia 5 de junho.

Na decisão, ela afirma ser juridicamente inadequado o pedido de habeas corpus sem se tratando de causa transitada em julgado, sob alegação de que o instrumento legal cabível é o da revisão criminal, quando a defesa pede a reavaliação do processo judicial.

A sentença da Comarca de Bataguassu é do dia 31 de agosto de 2001, mas o caso transitou em julgado no dia 24 de fevereiro de 2011, mantendo a condenação de cinco anos de reclusão em regime fechado.

Fotografia do carro apreendido em 2001 (Foto: Reprodução)
Fotografia do carro apreendido em 2001 (Foto: Reprodução)

Sem conseguir arcar com o advogado, Lucilene da Silva Bandeira foi quem conseguiu chamar a atenção do observatório e pedir ajuda ao Observatório. A advogada critica a decisão que negou a liberdade de Alexandre.

"Estavam ali já todas as provas necessárias. As imagens das carteiras de identidade deixam evidente que são pessoas diferentes. O homem preso em flagrante no Mato Grosso do Sul não é o mesmo preso agora em Pernambuco. Tá lá no habeas corpus também todo o esforço dele para regularizar sua situação no TRE, reclamando da suspensão do título de eleitor e se defendendo”, critica ela.

Além de ser do grupo de risco à covid por ter pressão alta, Alexandre é essencial ao sustento da esposa. Era ele quem trazia os R$ 480 reais a cada quinze dias, já que na pandemia, em isolamento, Lucilene não está recebendo o que ganhava como catadora de recicláveis.

“Eu não vou me calar, nunca vou desistir de provar que ele não tem nada a ver com isso. É um homem inocente que está pagando por um crime que não cometeu”.

Outro lado – Procurado por meio da assessoria de imprensa, o TJ-MS (Tribunal de Justiça Estadual) respondeu que o caso “está sob análise da Desembargadora e por isso o TJ não pode comentar o mérito da questão”. “Apenas se manifesta no sentido de confiar plenamente na total capacidade técnica da relatora e dos demais desembargadores que julgarão o caso de acordo com a Constituição Federal e as leis”.

A Polícia Federal também enviou nota e disse que não comenta “investigações encerradas e devidamente julgadas pelo Poder Judiciário”. Já a assessoria da Polícia Civil de Pernambuco afirma que os policiais cumpriram o mandado de prisão através da Delegacia de Polícia Interestadual e Capturas liderada pelo delegado Paulo Dias.

“Toda a checagem de confirmação foi efetuada, confirmando filiação, data de nascimento, número de documento de identificação, além da consulta aos sistemas informatizados e banco de dados de segurança de caráter nacional. O preso alegou que alguém utilizou seus documentos de forma indevida para cometer esse crime, no entanto, como se trata um mandado judicial, expedido nos autos de um processo, a ordem de liberação também tem que ser nos autos do referido processo”, diz a nota enviada à reportagem.

Sobre a fuga ocorrida em 2001, a Agepen (Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário), também por meio da assessoria de comunicação, declarou que a unidade de Bataguassu não era administrada pela Agepen, “que assumiu a unidade apenas em 2005”.

Até a conclusão da reportagem, a PRF não respondeu às perguntas enviadas pelo Campo Grande News.

Por meio da assessoria de imprensa, o Ministério Público Estadual declarou que a 1ª Promotoria de Bataguassu informou que o processo, por ser de 2001 e não estar digitalizado "encontra-se entre os processos arquivados" e que por isso, não localizou a ação "no prazo demandado" pela reportagem.

Matéria alterada às 12h40 para acréscimo de informações. 

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