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Capital

Criada como "se fosse da família", Tereza trabalhou 57 anos sem receber salário

"Adotada" aos 6, Tereza só percebeu que não era "da família" quando pediram para ela sair de casa sem receber nenhum salário

Paula Maciulevicius Brasil | 17/11/2020 14:34
Tereza, à esquerda, na tradicional foto de família. (Foto: Arquivo pessoal)
Tereza, à esquerda, na tradicional foto de família. (Foto: Arquivo pessoal)

A menina da esquerda na fotografia é Tereza quando tinha 10 anos de idade e já cuidava das outras crianças que na mesma imagem aparecem no colo. À frente está o casal, ele militar, ela dona de casa. Foi o casal que trouxe Tereza aos 6 anos para casa e a criou "como se fosse da família", mas sem permissão de ir à escola e encarregada de todos os serviços da casa.

A história parece de novela, mas foi escrita em Campo Grande, mais precisamente na região do Bairro Taveirópolis e tem desdobramentos que hoje estão na justiça trabalhista. Depois da morte do militar, a esposa adoeceu, e os filhos e netos querem tirar Neli Terezinha de Souza Machado Rodrigues, de 63 anos, do lugar onde vive há décadas. E ela, que alega nunca ter recebido salário, pede na ação o pagamento referente aos últimos cinco anos.

Porque não dá para pedir o de uma vida", se contenta.

Vaquinha foi criada para família para Tereza conseguir uma casa.
Vaquinha foi criada para família para Tereza conseguir uma casa.

O caso chegou ao Campo Grande News depois de ser criada vaquinha on-line pela família formada por Tereza para que ela consiga ter sua própria casa. Sim, dona Tereza se casou, teve três filhos e ainda assim nunca saiu da residência nem parou de trabalhar para a família. Até quando casou, os donos a deixaram morando nos fundos com o marido para que ela continuasse ali. Agora, os filhos e netos veem ingratidão quando dona Tereza pede justiça.

Ela acreditou que era da família, nunca recebeu salário nem registro, quando chegaram aqui, o filho dessa senhora, disse que ou ela pagava aluguel ou saía da casa. Aí ela foi entender que não era ninguém", conta a filha, Alessandra Machado Rodrigues

É Alessandra quem ajuda a mãe a lutar pelos direitos. "Ela nunca teve registro nada que comprovasse a adoção, não tinha como provar. Então entramos com processo trabalhista".

Por telefone, dona Tereza resume toda sua história. No registro, ela é Neli Terezinha de Souza Machado Rodrigues, mas até o nome lhe foi imposto e ela passou a ser chamada na família e também a se identificar como Tereza.

Dona Tereza hoje, depois de 57 anos trabalhados para família, reclama seus direitos.
Dona Tereza hoje, depois de 57 anos trabalhados para família, reclama seus direitos.

Nascida em Maracaju, Tereza conta que "essa senhora" lhe encontrou quando a mãe biológica dela trabalhava num hotel na cidade. "Eu estava sempre com a minha mãe, ela trabalhava de doméstica, e ela pediu pra ficar comigo, pra ver se eu não ficava de companhia do menininho dela. Ele tinha uns 2 aninhos, eu devia ter uns 6, 7 anos", recorda.

Eu fui pra essa família, para Ponta Porã e lá fiquei sendo babá, depois viemos para Campo Grande, fiquei cuidando de criança e não podia estudar, eu tinha que trabalhar lá e continuei assim, nessa vida. Fui crescendo e lavando roupa, limpando a casa, cozinhando", descreve.

A medida em que crescia, mais responsabilidade tinha e o único benefício era ser dependente deles no plano de saúde do quartel. "Mas só no papel, na realidade eu não frequentava não", afirma.

Ao chegar aos 19 anos, a filha da senhora apresentou um rapaz à dona Tereza. "Conheci ele na porta de casa, casei e continuei. Passei a morar no quartinho dos fundos, porque eles me disseram para continuar trabalhando. Ele, o senhor me disse: 'fique aqui com a sua família'."

Tereza ainda conta que nunca teve salário e que ainda tinha de pagar água e dividir as despesas. "Eu continuei trabalhando a troco da moradia, da casa e quando chegavam pessoas de fora, porque a casa vivia cheia, não tinha horário, eu tinha que levantar pra poder servir. Até hoje eu continuei trabalhando assim", diz.

Onze anos atrás, o militar adoeceu e Tereza ficou também fazendo o papel de cuidadora. Era ela quem o acompanhava no hospital. "Cuidei dele a vida toda, dava banho e até fiquei meio doente, porque ele era muito pesado. E era só eu que fazia o serviço de enfermeira também até ele falecer", detalha.

A morte dele aconteceu há três anos, ao mesmo tempo em que a esposa adoeceu. A  família da qual um dia Tereza acreditou fazer parte começou a pedir para sair da casa.

"Logo que ele faleceu, já começou a guerra pra me tirar daqui, dizendo que eu não tinha direito a nada, que eu era empregada e tinha que sair. O filho dela cansou de me chamar de analfabeta, eu fui babá dele, dos filhos dele", ressalta.

Sem ter para onde ir, Tereza mora na casa com uma filha e o marido, mas deixou os fundos e foi para a casa da frente cuidar da senhora, hoje com 95 anos.

"Eles dizem que a gente tem que cortar vínculo, que ela tem que desacostumar de mim. Mas se eu saio de perto, ela grita. Se eu não durmo com ela, ela não dorme. Quando eu vou dormir, ela gruda em mim", explica Tereza.

"Como da família? Eu não era não. Eu trabalhava tanto, nunca participava das coisas, nas festas eu estava sempre servindo os outros. Depois que o senhor se foi, vieram falar pra mim que eu não era da família".

Sobre só ter procurado a justiça agora, Tereza diz que não tem como nem pra onde sair "com uma mão na frente e outra atrás".

"Eu entrei com processo porque era muita coisa o que eles fizeram comigo, por isso entrei. Se eu sair hoje, não tenho como, eu não tenho salário,meu marido trabalha, mas eu preciso arrumar um lugar", se justifica.

Sobre a ação judicial, dona Tereza diz: "o que eu peço é os últimos cinco anos, porque não dá pra pedir a vida inteira, além da justiça não conceder isso, eles não têm como pagar. Eu só quero construir minha casa e sair daqui", resume.

A filha, Alessandra, é a terceira e quem presenciou a vida toda uma criação de também servir. "Era assim e eu vi tudo. A gente inclusive quando vinha aqui visitá-la, a gente não estava a passeio não, como filho dela, a gente também fazia serviços. Eu só fui viver uma vida um pouco diferente quando eu me casei e mudei", completa.

O Campo Grande News tentou contato com a família. Primeiro, o filho do casal se limitou a dizer que o processo tem várias fases e que estão tentando conciliação há muito tempo. Afirmou não se encontrar na cidade e que conversar por telefone não seria viável. Mais tarde, informou que o caso corre em segredo de justiça e por isso não iria comentar.

O pedido à justiça é de reconhecimento de vínculo trabalhista, pagamento de verbas rescisórias, horas extras, recolhimento do FTGS do período e ainda indenização por dano moral;

A reportagem teve acesso à ação, em trâmite na 7ª Vara Trabalhista em Campo Grande desde janeiro. Chegou a haver pedido de tutela antecipada pela defesa de Neli Terezinha para garantir o pagamento do valor reclamado, mas foi negado. De lá para cá, aconteceram duas audiências para  tentar a conciliação, sem acordo.  Agora, as provas serão avaliadas para a decisão judicial.

A vaquinha virtual para ajudar dona Tereza pode ser acessada pelo link: https://www.vakinha.com.br/vaquinha/um-lar-para-tereza.

(Matéria editada às 15h44 para acréscimo de informação)

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