Santa Casa foi lugar de vida e morte para funcionários que partiram de covid
Cinco funcionários que morreram em decorrência da covid-19 foram homenageados com Oração de Santo Agostinho: "A morte não é nada"
“A morte não é nada.
Eu somente passei
para o outro lado do caminho.Eu sou eu, vocês são vocês.
O que eu era para vocês,
eu continuarei sendo".
O trecho acima é parte da oração "A morte não é nada" de Santo Agostinho, que estampa a placa de homenagem entregue aos familiares dos funcionários da Santa Casa que partiram de covid. Na manhã de hoje aconteceu a primeira cerimônia ecumênica que o hospital se propôs a fazer e que deve se repetir todos os anos, no mês de fevereiro.
Os cinco homenageados foram funcionários que morreram desde o início da pandemia: Alexandra Morais de Souza, 46 anos – técnica em enfermagem no CTI 7; Dirce Carvalho Barbosa, 66 anos – auxiliar de enfermagem na Central de Material Esterilizado; Maria de Lourdes Martins da Silva, 72 anos – instrumentadora no Centro Cirúrgico; Rosangela Maria Teixeira Delmondes, 57 anos – assistente administrativo na Manutenção e Valquiria Pinto de Freitas, 45 anos – atendente de farmácia no 5º andar – assistente administrativo na Manutenção.
A cerimônia reuniu no mesmo microfone o presidente da Santa Casa, Heitor Freire, a presidente da Federação Espírita de Mato Grosso do Sul, Maria Túlia Bertoni, o pastor e capelão da Santa Casa, Adão José Pereira e o arcebispo de Campo Grande, Dom Dimas Lara Barbosa. Após as falas de cada um, na tentativa de levar consolo, foram entregues as placas com uma das orações mais bonitas que se há. E com o coral do próprio hospital cantando, sob regência do maestro Teófilo Rafael, não teve quem não se emocionasse, até mesmo na hora de cantar.

"Se saísse da Santa Casa, morria"
Aposentada há dois anos, esta era Rosângela Maria Teixeira Delmondes, de 57 anos, que se recusava a ficar em casa e deixar a Santa Casa. Foi ali, no local onde 33 anos e sete meses da vida, que ela morreu no último dia 13 de janeiro, de covid.
O jeito carismático e a preocupação que Rosângela tinha com os colegas está no choro de dona Maria Franco Vieira, de 64 anos, fiscal de limpeza do hospital. Com uma notável camiseta rosa e a 'Lindinha', das Meninas Super-Poderosas ancorando seu crachá, dona Maria era acalmada pelos demais colegas. "As palavras... Quando começaram a falar, isso tocou em mim, porque agora pouco perdi conhecidos. A Rosângela da manutenção era tão nova, entrou e não voltou".

Rosângela também é citada na fala do capelão ao dizer que foi com a ajuda dela, 17 anos atrás, que ele conseguiu implantar a assistência religiosa no hospital. As falas de carinho chegam como consolo aos filhos, Cleiton Delmondes dos Santos, de 29 anos, e Suelen Delmondes Corrêa de Freitas, de 34 anos.
"Eu não tinha um ano quando ela entrou aqui: dia 1º de junho de 1987. Ela começou na limpeza, ficou um ano e depois foi para o PABX, passou pela Informação e o último setor era o da manutenção do administrativo", narra a filha.
Dos 57 anos de vida, 33 se passaram dentro do hospital, chegando mais cedo para fazer café para os "meninos do serviço". "Minha mãe batia ponto 7h, mas ela saía de casa 5h30, pegava o primeiro ônibus e chegava aqui 6h para fazer o café. Ela sempre gostou de estar aqui, vivia pela Santa Casa", diz Cleiton.
Em dezembro, logo depois do aniversário, Rosângela foi ao Centro e torceu o pé. Os filhos a levaram para o hospital e ela precisou ser operada. Na recuperação da cirurgia, contraiu covid-19, chegou a reagir bem aos medicamentos nos primeiros dias, mas precisou ser intubada duas semanas depois.
"A covid agravou muita coisa, e como ela estava delicada por conta da cirurgia, morreu dia 13 de janeiro. Para nós foi uma surpresa, a última coisa que a gente imaginava era que ela ia pegar covid", comenta o filho.
Aposentada há dois anos, Rosângela não abria mão de trabalhar. "A gente dizia que se ela ficasse em casa, ia ficar doente, e ela mesmo falava: 'será que eu vou morrer trabalhando'? A vida dela era a Santa Casa", completa Suelen.

"Sonho"
Uma semana antes de completar 45 anos, Alexandra Morais de Souza, técnica em enfermagem no CTI, partiu. Foram sete anos dedicados à Santa Casa, "sonho" de trabalho para a técnica.
"Ela adorava trabalhar aqui, nunca reclamou mesmo com a rotina muito cansativa, ela chegava cedo e ia embora tarde, tinha amor pelo que fazia, sabe?", descreve a filha, Caroline de Souza Romero, de 22 anos.
Quando crianças, Caroline e o irmão Lucas lembram do esforço da mãe para fazer o curso de técnica em Enfermagem. "Ela se dedicada, fazia especialização, gostava da área de pediatria. Viemos embora de Corumbá e ela começou a trabalhar aqui em Campo Grande, era o sonho dela trabalhar na Santa Casa", diz a filha.
Alexandra foi a primeira a morrer de covid na Santa Casa. Pegou a doença no início de agosto, e faleceu dia 21 de infarto, consequência da covid. "Quando ela estava em casa ainda dizia: 'puxa, quero sarar logo pra voltar a trabalhar, eu amo aquele lugar. Será que eu vou morrer trabalhando?' O sonho dela era se aposentar na Santa Casa, mas ela era muito nova. Tinha só 44", desabafa a filha.
Muita nova para também para morrer de covid. "Não achávamos que ela fosse morrer de covid, e foi a covid que cessou a vida dela", completa Caroline.
"Meu orgulho"
Contra a lei da natureza, quem segurava a placa de homenagem no nome da filha: Valquiria Pinto de Freitas, de 45 anos, era o pai, seu Maurinho de Freitas, que aos 70 anos enterrou Valquíria em outubro do ano passado. A filha trabalhava há dois anos e seis meses na Santa Casa como atendente de farmácia.
Com comorbidades, Valquiria foi afastada do trabalho logo que a pandemia chegou, portadora de lúpus, acabou também tendo câncer e no vai e vem de médicos e hospitais para tratamento, contraiu a covid-19. "Isso que acelerou e trouxe ela a óbito. Ficou três dias internada e faleceu, fala o pai.
Apoiado pelos netos, filhos de Valquiria, ele fala do orgulho que sentia dela. "Opa, quem não tem orgulho? Ela morava comigo, eu criei os filhos dela, foi uma batalha difícil", descreve. Valquiria trabalhava há 11 anos no Hospital do Câncer e na oportunidade que teve, assumiu também a função na Santa Casa. "Eu falei para ela sair de um, porque ficava muito puxado para ela", recorda Maurinho. A escolha foi pela Santa Casa.
...A vida significa tudo
o que ela sempre significou,
o fio não foi cortado.
Porque eu estaria fora
de seus pensamentos,
agora que estou apenas fora
de suas vistas?Eu não estou longe,
apenas estou
do outro lado do Caminho…Você que aí ficou, siga em frente,
a vida continua, linda e bela
como sempre foi.”
Santo Agostinho