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Artes

Aos 97 anos, Manoel de Barros renasce em “Bernardo” e com poesia inédita

Ângela Kempfer e Bosco Martins | 19/12/2013 06:29
Manoel em cena do documentário "Dedicatória".
Manoel em cena do documentário "Dedicatória".

Manoel de Barros não anda nada bem de saúde, tem escrito pouco, mas continua produzindo. Hoje, no dia do aniversário de 97 anos, ganha como presente uma nova edição do livro “Poesia Completa”, homenagem da editora Leya, com o frescor de um poema inédito, criado em 2013.

“A turma” é a volta a um tempo recorrente no trabalho do poeta, época de natureza, de criancice e do velho amigo Bernardo. “A gente não sabia botar comportamento nas palavras. Para nós obedecer a desordem das falas infantis gerava mais poesia do que obedecer as regras gramaticais”.

O amigo e jornalista Bosco Martins lembra que ultimamente são poucos os interlocutores que chegam a Manoel. Além dele, a filha Marta de Barros, a mulher Stella e a secretária particular Elaine Sandra Paixão. Este ano, Manoel perdeu o filho Pedro, dor que já havia experimentado com a morte de outro filho, João. Uma tristeza a mais para desencorajar quem caminha para os 100 anos.

Bosco conhece Manoel como poucos e, apesar da distância imposta pela família, ainda consegue fazer chegar as mãos do poeta livros e mais livros de fãs com pedido de um autógrafo. Como interlocutor, ele passa a falar mais sobre Manoel nos próximos parágrafos desta reportagem, um relato sobre como está nosso poeta hoje.

Bernardo e o seu cachimbo.
Bernardo e o seu cachimbo.

Digo sempre uma coisa: desconfio que Manoel de Barros gostaria de ter nascido Bernardo. Quando o conheci, ao lado do poeta e de Stella (a esposa), Bernardo tinha seus 85 anos e veio morar em Campo Grande para se tratar de problemas cardíacos. Stella, que era voluntária do Asilo São João Bosco, resolveu ajudar a cuidar dele. Foi assim por mais de 20 anos.

O asilo é uma chácara que lembra a fazenda do Pantanal, cheia de passarinhos e árvores pelo quintal, como Bernardo sempre gostou e onde conheceu Manoel, trabalhando na casa da família.

O prazer dele era tomar umas pinguinhas no final de tarde e fumar cachimbo.

Mas um dia o doutor o proibiu de vez de fazer as duas coisas. Foi quando o Manoel botou em questão: "Mas Doutor, já que mulher nunca teve... não poderia ter ao menos um prazer na vida?"

Foi assim que Bernardo continuou fumando o seu cachimbo...

Junto com Manoel, vez ou outra, visitávamos o Bernardo que passava o tempo sentado num banco, fitando o céu e fumando.

Quando morreu o poeta disse: Digo uma coisa a você: acho que eu, Manoel de Barros, gostaria de ter nascido ele.

A natureza do poeta nunca mais foi à mesma depois deste dia. Desconfio que, por isso, vive a celebrar o amigo em desconcertantes poemas.

Só a perda dos filhos o abalaram tão profundamente. O poeta incrustou ainda mais em suas inscrições/linguísticas rupestres. Ao escavar suas vozes e reascender a chama do menino arteiro que vive a renovar e animar sua poesia.

Bernardo obteve momentos na vida do poeta de ser o pai que Manoel por uns momentos deixou de ser. Depois que a tia que ele cuidava morreu, mudou-se para fazenda no Pantanal. Sua lida diária era varrer o quintal.

E desta feita também ajudou a criar os filhos do Manoel, a ponto dos mesmos gostarem tanto de Bernardo, quanto do poeta. Vem dai o orgulho e admiração ao amigo e a homenagem como seu alter ego.

Certa vez, Bernardo foi trabalhar numa lancha de passageiros que fazia trajeto nos rios Paraguai e Taquari. Diversão dele era pescar, escamar peixes e rir.

Bernardo ria muito. Ria sozinho. Ria a perder de vista....Quando enjoou da coisa, voltou pro Pantanal.
É que na fazenda tinha o cantinho dele em cima de uma árvore. Uma cama de tábuas onde dormia horas, sem nunca despencar.

Da outra vez que Bernardo e o poeta se perderam quase foi para sempre...

Foi quando ele se danou a andar pelo norte do Paraná, onde foi lidar com colheita de café. Mas de repente não se teve mais noticias dele...

Depois de longo tempo, toca o telefone no apartamento do poeta no Rio de Janeiro. Era um delegado de policia de Bauru, no estado de São Paulo. “Prendi um rapaz aqui que tá de porre e nunca para de rir”, disse o delegado. “Encontrei no bolso dele um papel todo amassado com esse numero de telefone. Por isso estou ligando”, emendou o policial do outro lado da linha.

“Segura ele ai que estou indo buscá-lo, agora Doutor! Esse rapaz é meu irmão, o Bernardão da Mata!”, exclamou o poeta, do outro lado da linha.

Foram dois dias de viajem até reencontrar Bernardo. A viagem era de trem, do Rio a Bauru e de Bauru a Porto Esperança. Depois, de Porto Esperança a Corumbá a viagem de volta era de navio e o restante até a fazenda era feito de lancha.

Por isso, ele foi o escolhido entre tantos? Pode ser! Mais desconfio que hoje, e a cada aniversário, Manoel renasce em Bernardo.

A turma, de Manoel de Barros

A gente foi criado no ermo igual ser pedra.
Nossa voz tinha nível de fonte.
A gente passeava nas origens. Bernardo conversava pedrinhas
com as rãs de tarde.
Sebastião fez um martelo de pregar água
na parede.
A gente não sabia botar comportamento
nas palavras.
Para nós obedecer a desordem das falas
Infantis gerava mais poesia do que obedecer
as regras gramaticais.
Bernardo fez um ferro de engomar gelo.
Eu gostava das águas indormidas.
A gente queria encontrar a raiz das
palavras.
Vimos um afeto de aves no olhar de
Bernardo.
Logo vimos um sapo com olhar de árvore!
Ele queria mudar a Natureza?
Vimos depois um lagarto de olhos garços beijar as pernas da Manhã!
Ele queria mudar a Natureza?
Mas o que nós queríamos é que a nossa
palavra poemasse.”

Stella, Bosco e Manoel, em um dos últimos registros do poeta.
Stella, Bosco e Manoel, em um dos últimos registros do poeta.

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