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Comportamento

"Preparador de corpos" lida com a morte há 15 anos e já arrumou o próprio pai

Elverson Cardozo | 23/06/2014 06:19
Maleta de maquiagem tem produtos comuns. (Foto: Marcelo Victor)
Maleta de maquiagem tem produtos comuns. (Foto: Marcelo Victor)

A maioria não toca no assunto, evita falar, tem medo, diz que atrai coisa ruim, dá azar... Alguns debatem e estudam a morte a fundo, enquanto outros lidam com ela de perto, todos os dias. É o caso de Eraldo Torres, de 47 anos. Ele tem uma profissão pouco comum, de nome difícil, mas essencial. É tanatopraxista ou, em linguagem popular, preparador de corpos. "Tem gente que chama de Zé do Caixão", brinca.

O bom humor é essencial para quem lida com uma realidade triste e extremamente dolorosa. Mas no exercício da profissão, a seriedade precisa ser aparente. "Quando eu preparo um falecido, me coloco no lugar da família. Respeito. Não importa quem seja, aqui cai de tudo: padre, médico e até bandido, mas lá fora tem alguém que ama ele", diz.

Em uma mesa inoxidável, de necropsia, "cai", em um dia qualquer, até o próprio pai: "O meu faleceu há 6 anos, de parada cardiorrespiratória e embolia pulmonar. Eu que tirei a barba, vesti e fiz maquiagem. Fiz questão. Só não preparei do corpo porque não tive sangue frio. Era meu melhor amigo", relata.

Ex-taxista, Eraldo deixou a profissão de lado para continuar no volante, mas de uma ambulância de funerária. No início, carregava pacientes do plano de saúde. Com o passar do tempo, percebeu que poderia crescer e ganhar mais se estivesse aberto a novas experiências.

Resolveu, então, ser tanatopraxista. Foi estudar, fez curso na Santa Casa de BH (Belo Horizonte) e, em pouco tempo, já estava trabalhando. A primeira experiênica em uma sala, com um defunto, foi na companhia de um amigo, que já era experiente.

"Foi um acidente de trabalhao. Ele estava instalando telefone com um colega, que levou um choque. Foi ajudar e morreu eletrocutado", conta. O primeiro seviço sozinho, no entanto, ficou na memória. "Preparei um colega de trabalho, que já tinha passado por aqui e morreu do coração. A gente fica meio assim, tem um sentimento maior quando é conhecido". No total, já são 15 anos lidando com a morte.

Eraldo mostra cera para reconstrução facial. (Foto: Marcelo Victor)
Eraldo mostra cera para reconstrução facial. (Foto: Marcelo Victor)

Como funciona? - Para quem não está acostumado, a sala da funerária, onde tudo acontece, não é nada agradável. Chega a dar pânico. É branca do chão ao teto. Lembra um ambiente cirúrgico, com máscaras, luvas, bisturis, dissecadores, tesouras, agulhas, entre outros instrumentos.

As paredes comportam avisos, um banner que explica os procedimentos e um enorme quadro com detalhamento colorido do sistema circulatório. É pela carótida, afinal de contas, que costuma ser injetado o fluído arterial, ou "formol", como é popularmente conhecido, substância que preserva o corpo durante o tempo de velório.

O líquido vermelho, que vem em um frasco de 900 ml, é diluído em 7 litros de água. Tudo isso é injetado no defunto. O sangue é dispensado com o auxílio de uma bomba sugadora. Ao contrário do que muita gente pensa, os órgão não são retirados.

Isso é o básico, porque o procedimento total demora cerca de uma hora, pode chegar a mais de 3h, dependendo do caso, e inclui, além do banho e da aplicação do formol, incisão, sutura interna e até uma espécie de lipo para eliminar os fluídos corporais.

Os instrumentos de trabalho de Eraldo.
Os instrumentos de trabalho de Eraldo.

Necromaquiagem - Tem, ainda, a maquiagem para melhorar a aparência do morto ou, se for o caso, recontruir um rosto deformado por causa de um acidente, por exemplo. A necromaquiagem, aliás, é de extrema importância.

Eraldo tem a própria maleta, com tudo dentro: corretivo, base, pó, rimel, batom, blush, sombra. Até existem marcas especiais, focadas no segmento, mas, no geral, a maioria usa as comerciais, para quem ainda está vivo. O "kit" do profissional é composto por produtos da Avon, Vult, Água de Cherio e alguns importadas do Paraguai.

A cobertura, no homem, é bem leve, só para melhorar a aparência, enquanto a da mulher é para colorir. Tudo isso depende, claro, da vontade da família. Algumas, geralmente as de formação evangélica, dispensam. Por outro lado, tem gente que contrata maquiador particular ou aparece com pedidos que fogem do comum: "Teve uma vez que uma família pediu olho bem preto, pesado, porque a falecida curtia rock. O filho mesmo veio e maquiou", lembra.

Se alguns parentes não querem, outros, por gosto ou necessidade, não pensam duas vezes. O tanatopraxista lembra de um caso em que o tratamento foi indispensável". Era uma senhora que o ônibus havia passado em cima. O rosto dela estava todo deformado".

A reconstrução foi com uma espécie de cera, que esconde os "buracos" e camufla hematomas e cicatrizes. A base e o pó vem depois. Mas há outras técnicas que, na verdade, são aliadas. Tem situações em que o osso do rosto está quebrado e é necessário preencher com algodão. "A gente procura melhorar a aparência", resume.

Melhorar a aparência e, de certa forma, diminuir o sofrimento daqueles que precisam enfrentar a dor da despedida. Há 15 anos na profissão, lidando com o fim todos os dias, Eraldo sabe que, algum dia, assim como todos, vai estar na mesma mesa e nas mãos de outro tanatopraxista.

Ele pensa nisso, diz que é inevitável e tenta viver da melhor maneira possível. "A morte me ensinou e ensina que a gente tem que valorizar a vida e dar valor ao próximo. Tem que ser humilde e não pode se achar melhor que os outros porque todos vão chegar aqui. Não vai ser dinheiro ou posição social que vai fazer uma pessoa voltar à vida", comenta.

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