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Comportamento

A vida no trânsito com Venâncio, Fiat 147 que dá trabalho, mas rende histórias

Elverson Cardozo | 08/09/2014 06:19
Digitadora tem um carro melhor, o Uno do marido, mas prefere andar no Fiat 147. (Foto: Marcos Ermínio)
Digitadora tem um carro melhor, o Uno do marido, mas prefere andar no Fiat 147. (Foto: Marcos Ermínio)

Se Venâncio falasse, com certeza agradeceria o carinho recebido, as fotos, as selfies dentro dele e, de tudo isso, acharia graça. "Filho" mais velho de uma família de 4 pessoas, sendo um casal e duas crianças, ele faz todo mundo passar raiva e vergonha. Dá um trabalho danado, mas é bem-vindo, deixa a vida mais leve, traz alegria - algumas tristezas, é verdade -, mas garante, pelo menos, boas risadas.

Venâncio tem alma de criança peralta, daquelas que deixa os pais loucos, mas já é adulto. Tem 26 anos. Nasceu em 86, em uma época em que tipos da espécie dele eram considerados os "bam bam bam". Venâncio é visto como gente, integrante de uma família, mas não passa de um carro, um Fiat 147.

Laura faz piada da situação. (Foto: Marcos Ermínio)
Laura faz piada da situação. (Foto: Marcos Ermínio)

Nos anos dourados, na década de 80, um veículo desta estirpe, o primeiro da marca fabricado no Brasil, garantia o status de muita gente. Hoje, ninguém dá mais nada para o coitado, tira sarro, tem vergonha. Ninguém não. Os outros "147" podem até levar uma vida assim, antissocial, depressiva, sem brilho, mas com Venâncio a coisa é diferente.

Ele "mora" em uma casa, no bairro Jardim Noroeste, em Campo Grande, tem uma uma vida corridíssima, trabalha até dizer chega e é o xodó da digitadora Laura Mantovani Mazzini, de 38 anos.

Há 6 anos, planejando a chegada do segundo filho e tendo apenas o ônibus coletivo como meio de transporte, ela o descobriu. O pai, mecânico, foi quem deu a dica. Disse que sabia de alguém que estava vendendo um Fiat 147 por R$ 2,5 mil. Foi uma mão na roda. Laura se animou, foi conhecer o carro e, sem muita alternativa, diz que se apaixonou por ele.

Chave é item indispensável na bolsa. É a garantia de que o carro vai sair. (Foto: Marcos Ermínio)
Chave é item indispensável na bolsa. É a garantia de que o carro vai sair. (Foto: Marcos Ermínio)

Sem dinheiro para comprar à vista, fez um financiamento e, durante dois anos, pagou R$ 300,00 por mês, ou seja, R$ 7,2 mil no final do período. O veículo ganhou nome por conta de uma chaveiro que veio junto com ele e que tinha essas inscrições.

Deste então, passou a ser chamado assim e tornou-se parte da família, um filho para Laura que, agora, mesmo tendo um carro melhor em casa, o Uno do marido, recém-adquirido, não se desfaz dele por nada.

Tudo mundo já sabe que com ela é Venâncio para cá, Venâncio para lá... Não tem jeito. Laura é doida pelo carro. Irrita fácil se alguém insiste na proposta de compra, como já aconteceu, mas também fica nervosa com Venâncio, ainda mais quando ele estraga, "fica doente", como prefere dizer. E isso acontece sempre.

Em situações assim, o Fiat 147 faz Laura chorar, de raiva. Por várias vezes, a digitadora ficou na mão por causa dele. O escapamento cai com uma frequência absurda, mas ela sempre para e pega porque é mais barato mandar soldar do que comprar outro novo.

Mulher liga o carro com pedaço de chave e na base da gambiarra. (Foto: Marcos Ermínio)
Mulher liga o carro com pedaço de chave e na base da gambiarra. (Foto: Marcos Ermínio)

Na rua, Venâncio também já "perdeu" o freio do nada e, para não bater em alguém, a motorista teve de subir no meio fio. Só parou no muro. A sorte é que ele estava devagar. Não tem outro jeito. Venâncio "anda" devagar mesmo, feito tartaruga e, por isso, desperta a ira de muita gente no trânsito.

Ao volante, Laura se vira como pode. Grita, xinga, revida às provocações, mas não consegue ver a quantos quilômetros está dirigindo.

O velocímetro está estragado, assim como o restante do painel. Para saber se tem combustível, ela dá um jeito de chacoalhar o carro até ouvir um barulhinho no tanque.

A partida é um caso à parte, um ritual na verdade. A chave quebrou. Laura nunca mandou arrumar, mas, com maestria, consegue usar o pedaço restante. Ela aciona o motor, mas como não consegue girar a chave, não consegue dar partida.

Para fazer isso, precisa apertar um botão, que foi feito graças a uma gambiarra. Antes, disso, porém, levanta o capô e, com uma chave de fenda - que carrega na bolsa -, coloca o cabo da bateria. Isso precisa ser feito tanto na chegada quando na partida, independente do lugar, caso contrário o Fiat "descarrega" e aí é mais raiva e lágrima.

De fora, o veículo já aparenta a idade que tem, mas por dentro é ainda mais acabado. O banco do lado do passageiro está com o estofamento rasgado e não levanta. Quem quiser ir atrás, precisa pular.

Laura pagou o carro em 24 vezes e não pretende vendê-lo. (Foto: Marcos Ermínio)
Laura pagou o carro em 24 vezes e não pretende vendê-lo. (Foto: Marcos Ermínio)

Venâncio parado é inofensivo. Andando dá medo. Mas Laura já se acostumou com ele. Se for pensar no passado, viveu situações bem piores. "Um dia a gente foi sair, entrou todo mundo no carro e quando eu olho, menino, tinha uma perereca bem no parabrisa. Eu falei: 'ela vai pular na minha cara'. Que desespero! Eu olhei e falei: 'desce, desce!'"

Para a família, a relação de Laura com Venâncio é uma atração. Todo mundo se diverte. "Eu não tenho vergonha não. Todo mundo conhece a gente pelo carro. E eu não estou nem aí", diz o filho, Mateus, de 10 anos.

Laura também não se importa. Dá risada da situação. Conta dos problemas como quem conta uma piada. A digitadora é do tipo de pessoa que não ostenta o que não não tem. É simples, de riso frouxo, boa conversa e, por isso, cativa tanto a gente.

No bairro, moradores conhecem a motorista do Fiat 147. (Foto: Marcos Ermínio)
No bairro, moradores conhecem a motorista do Fiat 147. (Foto: Marcos Ermínio)
Laura e Venâncio. (Foto: Marcos Ermínio)
Laura e Venâncio. (Foto: Marcos Ermínio)
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